Revista Ohun, ano 4, n. 4, p.1-32 , dez 2008 ISSN 1807-595479
Performance made in Brazil14
No Brasil, o corpo ainda sua.
Artur Barrio
As ações artísticas de Flávio de Carvalho, desde sempre envolvidas em provocações,
polêmicas e escândalos, já são consideradas como representativas dos primeiros movimentos
da arte da performance no cenário artístico nacional. Engenheiro, arquiteto, pintor
expressionista de grande reconhecimento, sociólogo, escritor e artista experimental do corpo,
Flávio de Carvalho realizou no início da década de 1930 a “Experiência no 2”. Obra
caracterizada pela ação do artista caminhando em direção contrária a uma procissão católica,
utilizando um acessório diferente durante todo o trajeto: um chapéu verde. Com essa atitude,
o artista buscou pesquisar a reação dos fiéis frente àquela situação inusitada. Como um
registro da ação, foi publicado posteriormente um livro de título homônimo. Uma breve
descrição do episódio é apresentada por Antonio Carlos Robert Moraes (1986, p.31-33):
A grande procissão de Corpus Christi se arrasta lentamente pela Rua Direita em direção à
Praça do Patriarca. Divide-se em alas – das velhas, dos pretos, das filhas-de-Maria, dos jovens
burgueses – que avançam cantando. Um vulto se insurge contra ela, andando no sentido
contrário. [...] Avança ameaçadoramente, sem tirar o chapéu. O clima começa a se tornar cada
vez mais hostil. A ala dos pretos olha submissa, as velhas comentam indignadas. Alguém grita:
"Tira o chapéu!”. [...] Lincha, lincha! É o grito que ecoa unânime entre a massa. Flávio sai em
fuga, “atropelando freiras”.
Mais tarde, em 1956, também em São Paulo, o artista realizou a “Experiência no 3”, obra elaborada e desenvolvida como uma passeata no Viaduto do Chá. Nessa outra ação, o artista desfilou com saia e blusa de mangas curtas e bufantes o “Traje Tropical” – uma crítica ao vestuário de modelo europeu adotado em países de clima tropical como o nosso. Com essa atitude de “antropofagia cultural”, o artista apontou para as questões relacionadas ao olhar do estrangeiro sobre as ditas culturas “exóticas” e antecipou as discussões propostas pela vertente pós-colonial da performance muito explorada por artistas como Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco15.
Outro artista de destaque na história da arte da performance, no Brasil, é Antonio Manuel. Artista português, radicado neste país, que na década de 1970 inscreveu “O Corpo É a Obra” no 19o Salão Nacional de Arte Moderna. O que compôs o trabalho foram os dados pessoais e 22 as medidas do próprio corpo do artista apresentados na ficha de inscrição do evento.
Resultado: Antonio Manuel teve seu trabalho rejeitado pelo júri e como resposta se apresentou nu, descendo as escadas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, durante a abertura do evento. Com essa atitude, o artista pôs em xeque toda a estrutura de seleção, montagem e exibição das obras de arte no espaço institucional; desafiou os conceitos de moral e pudor; quebrou tabus; e exaltou o exercício da liberdade artística acima de tudo. Sobre sua atitude, o próprio artista deu o seguinte depoimento:
Comecei a perceber a temática do corpo. Afinal era ele que estava na rua, sujeito a levar um tiro, receber uma pedrada, uma cacetada na cabeça, então imaginei usar o meu próprio corpo como obra. Decidi inscrevê-lo no Salão Nacional de Arte Moderna de 1970. Na ficha de inscrição escrevi como título da obra meu nome, as dimensões eram as do meu corpo, etc. Fui cortado. [...] Eu me dirigi ao Museu de Arte Moderna e lá cheguei uma hora antes da inauguração. Aí, me veio a idéia de ficar nu. Nada foi programado, a idéia surgiu ali como fruto de um sentimento de asco e de repulsa. As pessoas no vernissage ficaram atônitas, mas naquela meia hora eu me senti com uma força muito grande. (MANUEL, 1986).
Neste breve percurso histórico, destacamos mais alguns representantes da arte do corpo e da performance em território nacional:
Wesley Duke Lee com as primeiras investidas na prática da linguagem performance no Brasil; Paulo Brusky, também considerado como precursor da arte conceitual em nosso país; Teresinha Soares em Belo Horizonte16; José Roberto Aguillar e Banda Performática; Ivald Granato, organizador do happening/evento de intervenção artística intitulado “Mitos Vadios” (1978), ocorrido no estacionamento Unipark, Rua Augusta, em São Paulo. Participaram do acontecimento o próprio Ivald Granato, em performance como Ciccilo Matarazo, Hélio Oiticica, Claudio Tozzi, José Roberto Aguilar, Antonio Manuel, Ana Maria Maiolino, Júlio Plaza, Olney Kruse (enviou a obra), Regina Vater, Portilhos e Ubirajara Ribeiro. Hélio Oiticica apareceu travestido, usando peruca feminina, maquiagem, sunga, além de salto alto. A ação consistia na sua passagem em frente aos transeuntes ora exibindo a língua em movimento frenético ora tocando os genitais sob a sunga. Em Quase Heliogábalo, o poeta Waly Salomão descreveu tal performance ao seu modo: Hélio surge demencial, imantado pela reverberação de uma aparência de bacante, dançando, girando, uma mênade enlouquecida, “ESTOU POSSUÍDO”, gargalhava das obras de arte expostas ao redor pelos outros artistas, balançava, blusa com imagem dos Rollings Stones, blusão com a estampa do Jimi Hendrix, maquiagem carregada de ator de teatro japonês fazendo papéis femininos, o salto plataforma prateado, sério nunca, a performance era a chalaça com a pretensa seriedade dos artistas comprometidos com o mercado de arte. (SALOMÃO, 2003, p.139-140).
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Hélio Oiticica foi o criador dos “Parangolés” (1967). Na apresentação desses trabalhos, o público era convidado a participar da obra, ser a própria obra de arte em movimento, vestir as capas coloridas e re-montáveis. Os “Parangolés” só existiram enquanto acontecimento, cores em ação e performance. Rubens Gerchman, artista carioca que em 1974 realizou a performance “Por onde anda Matevich?”, no momento do desfile da bateria da Escola de Samba Mangueira com seus passistas vestidos com os “Parangolés”, em frente ao Museu de Arte Moderna - MAM do Rio de Janeiro, declarou sua admiração à ousadia e irreverência de tal evento.Oiticica também propôs “vivências” para os espectadores diante e dentro de suas produções artísticas, a exemplo de “Tropicália” (1966-67) e “Babylonests” (1971), espaços criados pelo artista com diversas referências à cultura nacional, com elementos tipicamente brasileiros, em que os conceitos de ambientação, instalação e performance foram explorados. Esses espaços de imersão eram completados quando preenchidos pelo corpo vivo, no aqui agora, em tato; paladar; visão; olfato; audição; e humores. Diante de tais proposições, expor objetos como os “Parangolés” em cabides ou caixas de acrílico é encerrar à categoria de “fetiche” algo já sem vida, desvirtuado de um de seus propósitos – o movimento, o acontecimento. Quando vemos um “Parangolé” em exposição, logo ficam evidentes as contradições nos projetos de montagem e fruição das obras em algumas mostras de arte contemporânea no Brasil.
Lygia Clark, artista mineira com vivências no Rio de Janeiro e no exterior, em suas pesquisas entre a expressão artística, as experimentações corporais e a Psicanálise, também objetivou aproximar arte e vida em suas produções. Partiu da criação de objetos que apresentavam formas e cores caracteristicamente neoconcretas e chegou ao conceito de corpo enquanto casa, à experiência do corpo no contexto artístico/terapêutico e à “gestualidade performática por parte de um espectador participante” (SANTAELLA, 2003, p.256). Criou “Máscaras sensoriais”, “Baba antropofágica”, entre outras produções como “Nostalgia do corpo - objetos relacionais” (1965-1988). Também expôs “Bichos”, esculturas em placas de metal unidas por dobradiças. Essas obras são caracterizadas pelo convite à participação e, assim como os “Parangolés” de Hélio Oiticica, estarão sujeitas a um comprometimento de suas propostas de manipulação e fruição se “encarceradas” numa redoma de vidro. A artista dá o seguinte depoimento sobre sua produção: Depois de ver um livro de fotografias pornográficas percebi que meus trabalhos, proposições, eram muito mais eróticos que o livro que havia visto. Ser tocada por um amigo que tinha na sua cabeça uma máscara sensorial provocou um grande choque em mim como se tivesse profanado o meu trabalho ainda vivido como sagrado. (FERREIRA; COTRIM, 2006, p.354).
Além de Hélio Oiticica e Lygia Clark, citados por RoseLee Goldberg (2001, p.212) como artistas da história da performance art na América Latina, Lygia Pape também é destacada pelo crítico britânico Guy Brett entre os artistas que iniciaram as pesquisas sobre a body art e a performance na contemporaneidade brasileira. (MORAES, A., 2003). Ainda entre as décadas de 1960 e 1970, Artur Barrio mesclou ações/situações com a exposição do corpo em diversos cenários urbanos. Sempre com uma postura política e ideológica muito clara contra a repressão, a violência e o medo vividos no país nesse período, Barrio realizou ações como a “Situação ORRHHH...”, no evento “Do Corpo à Terra” (1970), em Belo Horizonte, quando lançou as “Trouxas ensangüentadas” (pedaços de carne e ossos de animais embrulhados em tecido, amarrados com barbantes) no Ribeirão das Arrudas, na capital mineira. Diante dessas produções, o crítico Francisco Bittencourt denominou o grupo de artistas participantes desse evento (entre eles Cildo Meireles e Hélio Oiticica) de “Geração Tranca-Ruas”. Em “4 dias e 4 noites” (1970), o artista perambulou pelas ruas do Rio de Janeiro, vivendo intensamente as relações entre o corpo e a cidade, o eu e o outro. Caracterizado pelos imprevistos e incertezas da existência, esse trabalho,
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elaborado desde o início como arte e registrado anos depois num “Caderno-livro”, atualiza e extrapola o que até então é conhecido como live art e performance. Em entrevista sobre essa produção, Barrio declarou: Cecília: Barrio, pensando nessa deambulação pela cidade, queria que você falasse um pouco do que chama de “deflagradores” e que, como você diz, às vezes podem vir de reações orgânicas, de fluidos orgânicos, que poderiam agir como provocadores, fragmentando o cotidiano. Barrio: Já escreveram dizendo que sou um heracliteano... o movimento, o fluir, os fluidos corporais, o dentro e o fora. [...] Mas sobre essa questão do corpo relacionado às secreções, excreções, acho que o Cristianismo anulou de tal maneira o corpo, que o que existe como expressão interna do corpo passa a ser encarado como uma coisa atroz, sem muito significado. A nossa leitura do corpo é muito restritiva. O exterior existe, mas o nosso interior não existe. (COHEN, A. P., 2001, p.81-82).
A partir da década de 1980, surgiram no cenário nacional os artistas Guto Lacaz em “Eletroperformance I” (1983); Renato Cohen com suas pesquisas e espetáculos de fronteira entre as diversas áreas do conhecimento como, por exemplo, “Tarô-Rota-Ator“ (1984), O Espelho Vivo-Projeto Magritte” (1986); Otávio Donasci e suas “Videocriaturas”; Eduardo Kac entre o carbono e o silício na performance “Time Capsule” (1997), quando implantou um microship/transponder de identificação em seu próprio calcanhar; Tunga propondo “Instaurações”17; Maria Beatriz de Medeiros e o grupo de pesquisa Corpos Informáticos em performances e ações como a instalação intitulada “Estar” (2005)18 (Figura 18). A partir de uma sala de estar real montada na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, o grupo Corpos Informáticos interagiu em telepresença com diversos internautas durante o evento. O objetivo central da pesquisa do grupo é: [...] o corpo humano mediado por tecnologias: o corpo humano atual, desde a mais tenra idade, cotidianamente transpassado por técnicas imperceptíveis ou não; o corpo do outro que da mesma forma se constrói; a imagem de outros corpos (espectros), que também nos tornam conscientes de nossos próprios, imagem impressa, imagem-movimento transmitida, distorcida, corrigida, sincopada..., essa que se torna objeto de desejo, desejo de ser, desejo de tornar-se, mas também desejo de manipulação, de possessão; nossos corpos e suas próteses, sejam elas meios de locomoção, de leitura, de visão, de audição ou de criação, todas elas mais ou menos iterativas; enfim corpos constantemente redimensionados por novas tecnologias; logo, novos corpos e novas consciências. (MEDEIROS, 2005, p.150). Recordamos ainda a significativa presença de Márcia X no panorama da performance no Brasil, explorando as relações entre arte, erotismo e religião como na performance “Pancake” (2001) . Sobre a produção da artista, destacamos uma obra
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apresentada alguns meses após a sua morte: “Desenhando com terços” – imagem fotográfica de dois rosários católicos como pênis sobrepostos em forma de X, produto da performance de mesmo título. Lamentavelmente, esta produção foi alvo de censura por parte do próprio Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, instituição apoiadora da exposição itinerante “Erotica, os sentidos na arte” (2006).19 Também têm figurado entre os nomes da arte performance na atualidade brasileira Marcelo Cidade, Marco Paulo Rolla, Chelpa-Ferro, Laura Lima, entre outros. Décadas após as experimentações realizadas com o corpo pelos artistas das vanguardas históricas, a arte da performance – surgida entre as décadas de 1960 e 1970 – tem sido notada como uma das linguagens mais expressivas no cenário artístico do final do século XX e início do século XXI. Neste momento em que o conceito de identidade é explorado em diversas produções artísticas e científicas, tempos de corpos esteticamente modificados e mediados por tecnologias, evidenciamos a recorrência da apresentação/representação do corpo associada a questões políticas, científicas e bioéticas. A importância dada ao corpo na sociedade contemporânea, onde as noções de espaço público e privado, sujeito e objeto, o eu e o outro são mais evidenciadas, remete à imagem de um corpo político e crítico. Na atualidade, este corpo tem sido explorado como elemento estético, artístico, e até como instrumento bélico – o corpo arma, o homem bomba – também como máquina, redimensionado pelo uso de próteses tecnológicas. Este corpo atual, “transpassado por tecnologias”, é, paradoxalmente, limitado pela intolerância característica de um poder global e hegemônico. Este corpo expressa a sociedade contemporânea em sua complexidade e fragmentação, onde signos culturais, identitários, políticos, coexistem sobre uma pele escamada e com grande potencial de transformação. Este é um corpo que concentra em si a capacidade de síntese de uma cultura predominantemente urbana, que ainda busca estabelecer uma relação mais equilibrada com o mundo artificial. Não é sem propósito que o artista contemporâneo – principalmente o artista performático – tem reivindicado a presença do corpo do homem comum na arte e no nosso cotidiano que a cada dia perde em espontaneidade e liberdade, apresentando um corpo ainda humano, essencialmente animal, com odor e suor sobre a pele: o corpo natural frente ao corpo artificial. Enquanto os precursores do gênero performance colhem os frutos de suas apresentações pretéritas, divulgando e comercializando os registros dessas produções, realizando novas mostras no circuito de galerias e museus (Marina Abramovic, Gilbert & George, Orlan, Chris Burden, entre outros), novas gerações de artistas, teóricos e interessados na linguagem da performance continuam a surgir.
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