Texto publicado em O TEATRO TRANSCENDE, ano 12, n. 11, 2003. pp 95-98
Teatro de grupo: modelo de organização e geração de poéticas
André L. A N Carreira e Valéria Maria de Oliveira
A expressão teatro de grupo está muito presente no contexto do movimento teatral independente. Na atualidade se tem entendido por teatro de grupo, manifestações teatrais que se definem pelo uso do treinamento do ator, pela busca da estabilidade do elenco, por um projeto de longo prazo e pela organização de práticas pedagógicas.
A crescente fragilidade de mercados profissionais, nos quais, a figura tradicional do empresário teatral, exerce uma presença significativa, reforça a necessidade de articulação de formas de trabalho coletivas permanentes, que sustentem o esforço de atores e diretores. Isso faz o projeto de grupo de teatro se reafirmar como modalidade de trabalho preferencial, devido ao fato que esta oferece elementos de contenção para os artistas e aparentemente constitui uma forma organizacional mais adaptada às condições de produção fora do marco comercial. As condições de trabalho mostram uma absoluta falta de espaços profissionais para os teatristas principalmente para aqueles atores que pretendem escapar à dominação das teias da televisão e da publicidade. É oportuno dizer que é prudente questionar se existe uma tendência significativa dentro do movimento teatral que busca escapar dessas forças hegemônicas já que a televisão e a publicidade parecem conformar uma lógica que domina até mesmo aqueles que se situam na periferia. Seria a condição periférica uma opção ideológica ou uma circunstância eventual?
A carência de espaços profissionais obriga a constituição de alternativas de trabalho de autogestão. Como a hipótese de rentabilidade a partir da tradicional temporada parece não se materializar para os grupos que funcionam fora do sistema da fama televisiva, a busca do ambiente dos festivais, dos projetos sociais e das práticas pedagógicas parece um caminho inevitável. Haveria outra possibilidade de manter trabalhos teatrais independentes fora destes espaços? Provavelmente não, pois o desenvolvimento de um rígido sistema de produção que é determinado pela força do aparato da fama televisiva, não está permeável aos grupos a não ser através de outro paradigma de legitimação como é o patrocínio de grandes empresas.
No entanto, cabe diferenciar aquilo que é o grupo de teatro, isto é uma forma de organização para o trabalho teatral, da categoria Teatro de Grupo que, parece implicar em uma percepção diferenciada do lugar ocupado pelo núcleo de trabalho no panorama do movimento teatral.
Ainda que o trabalho coletivo seja característico do fazer teatral, as diversas possibilidades de organização deste trabalho conformam um leque amplo de formas e procedimentos que se definem por suas regras internas. A matriz que serve de paradigma à forma moderna de grupo de teatro se definiu a partir dos projetos que se estruturaram, especialmente a partir da busca de uma maior experimentação das questões relacionadas com o ator como via de construção da cena. Neste sentido o advento das pesquisas naturalistas no final do século XIX constituiu um elemento que contribuiu para impulsionar a organização de grupos permanentes de trabalho. As propostas do Théâtre Livre dirigido por André Antoine, que sugeria a adoção uma postura livre dos obstáculos impostos pelas rotinas massificadoras do lucro e da lógica do mercado, disseminou por toda a Europa as idéias do teatro independente. Essas idéias repercutiram na conformação de unidades grupais e posteriormente, se fizeram mais fortes nos anos 60 e 70 com o aparecimento de grupos experimentais como o Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, o Living Theatre, entre outros.
Atualmente podemos identificar uma percepção que vê como fenômeno homogêneo o teatro de grupo, mas de fato isso representa uma simplificação que coloca em um mesmo lugar, diferentes formas de trabalho e produtos artísticos muito diversificados. A expressão teatro de grupo é atualmente um qualificativo que tem a qualidade de oferecer, ao olhar dos teatristas, um produto que parece se revestir de elementos quase míticos, referenciados principalmente na cultura de treinamento difundida pela Antropologia Teatral. Esses elementos são normalmente associados a uma potencial qualidade artística que estaria relacionada com projetos grupais que se auto definem pela atitude de repensar o próprio teatro.
Assim, percebemos que o teatro de grupo aparece como uma promessa de permanente reflexão sobre os fundamentos do teatro, bem como do desejo de construir métodos de formação do ator baseados em uma. ordem ética para o trabalho coletivo. Estas formulações podem não representar um traço comum a todo teatro de grupo, mas sem dúvida diz respeito a características que se associa sistematicamente com a noção de “grupalidade” que é reiterada na esfera desse movimento.
A organização social do trabalho artístico condiciona a formulação de poéticas de tal maneira, que cada pacto de trabalho significa um conjunto específico de possibilidades de produção. Há uma relação dialética entre o poético e a estrutura social que implica em recíprocas influências que se condicionam de forma mútua. A partir dessa percepção do teatro de grupo surge a questão se esta forma de organização, que se oferece quase como uma “escola teatral”, supõe uma poética específica ou em uma gama de poéticas definidas? Em princípio, a diversidade dos trabalhos que estão situados sob a idéia de teatro de grupo nos faria pensar que a resposta a esta questão seria negativa, pois existiriam tantas poéticas como agrupações, mas ao observar encontros de teatro de grupo não é difícil encontrar várias semelhanças que vão desde formas de espetáculos até os discursos ideológicos que sustentam essas práticas.
A noção de teatro de grupo é muito funcional na hora de identificar um movimento contemporâneo no campo do teatro, que tem uma presença crescente no contexto cultural da América Latina. O advento do Terceiro Teatro na metade dos anos 70 teve repercussões muito contundentes na América Latina no final dos anos 80, pois alimentou uma nova perspectiva - um novo olhar - sobre aquele teatro que podemos considerar periférico. Neste processo surgiram, desde a Europa, vozes que propunham resgatar as formas teatrais que no nosso universo teatral estavam relegadas a zonas marginalizadas, tais como o teatro de rua ou expressões comunitárias. Isso esteve relacionado de forma direta com a estrutura organizacional dos grupos.
A idéia de inserção em bairros mediante a abertura de sedes, que caracterizou o movimento teatral dos grupos brasileiros nos anos setenta (Garcia, 1990), parece renascer atualmente, mas com signo político diferente. Se antes o objetivo fundamental era fazer da prática teatral um instrumento de intervenção social, os anos 80/90 se fortaleceram tendências cujos eixos focalizam a busca de linguagens teatrais como forma de construção de identidade cultural. Para estas tendências transformar o fazer teatral exige uma nova maneira de produção de forma a modificar a própria função social do teatro. A unidade grupal que intervinha junto a contextos comunitários passou a dirigir sua atenção para questões centradas nas dimensões fundantes do teatro que vão além do ato teatral em si, adquirem aspectos filosóficos. Isso repercute em projetos que implicam em estabilidade e em uma política pedagógica que difunde os referentes técnicos e ideológicos dos grupos. E o grupo surge como matriz necessária para o estabelecimento de um lugar identitário, funcionando como instrumento de coesão dos projetos coletivos.
Isso reforça a percepção de que o grupo não só é o lugar do processo criativo e social, mas a referência que deconstrói as idéias personalistas, e reafirmam a ação coletiva como instrumento de articulação dos projetos econômicos. Projetos esses que vão desde a manutenção do próprio grupo até à estruturação de circuitos de apresentações de espetáculos de diversos grupos, o que fica claro na institucionalização de circuitos de festivais que se alimentam reciprocamente. As redes alternativas, próprias dos tempos da globalização se fizeram no ambiente teatral, um dos mais significativos meios de sobrevivência devido à falta de alternativas para a profissionalização do trabalho do ator autônomo no teatro.
Estas estratégias nasceram das condições de adversidade e das brechas criadas pelas políticas de leis de incentivo à cultural, que também poderiam ser chamadas de ‘leis do perdão fiscal’. Este ambiente cultural dos anos 90 consolidou o modelo pelo qual um trabalho é validado se obtém patrocínio de grandes orçamentos, se exibe no seu elenco figuras famosas, ou penetra no circuito dos festivais. Nesse sistema, a noção de evento que circunda a realização dos espetáculos prevalece sobre a idéia de acontecimento relacional, observando-se assim um deslizamento da função do teatro, enquanto cerimônia para a focalização nas suas possibilidades enquanto mercadoria. A própria estrutura grupal, sofre pressões de todas as classes para se transformar em uma mercadoria em si mesma.
A busca de novos referentes de validação do produto teatral neste contexto contemporâneo, conduziu as formações grupais a diferentes discursos identitários. O acesso aos patrocínios que permitem uma condição de produção mais confortável, implica na construção de uma imagem do grupo que seja atraente para o possível patrocinador. Essa relação sempre complicada, pelos diferentes valores em jogo, pressiona o realizador teatral a adotar uma imagem que preencha as expectativas dos empresários, isso – via de regra – determina um discurso de adaptação e/ou de valorização da idéia de grupo.
A auto imagem do grupo como possível reservatório dos elementos fundamentais da arte teatral, retroalimenta discursos que mitificam a estrutura de funcionamento grupal como fonte da integridade do teatro, promovendo a idéia de que o teatro de grupo como fonte de ética. Estas circunstâncias estabelecem uma trama de forças que age diretamente sobre a própria noção do grupo e limita sua autonomia. Alguns mecanismos que parecem associados ao movimento de teatro de grupo, de fato se encontram do lado de fora do grupo, e aparecem como ‘regras’ ou procedimentos que definem o Teatro de Grupo, atribuindo valores a estes grupos e situando-os dentro do próprio sistema teatral.
Apresentar espetáculos é dialogar com o público, convidá-lo a ir ao teatro e interagir com as propostas que são levadas à cena. Por isso a construção de estratégias e procedimentos de convocatória de público é prática fundamental do fazer teatral. A potencialidade de comercialização do espetáculo diz respeito à própria sobrevivência do teatro, e isso significa a existência de uma enorme variedade de possíveis formas de comercialização e não somente a via do sistema da fama. Por isso, o teatro de grupo como todas as modalidades de trabalho teatral, está obrigado a desenvolver estratégias de divulgação e comercialização dos seus espetáculos. Neste caso o contexto sócio-cultural indica a negação dos modelos hegemônicos e a busca de sistemas alternativos.
Esse teatro que se propõe a ser de grupo, pode entender sua natureza como subversiva a partir de sua posição política frente às regras de mercado. O teatro de grupo se propõe diferenciar justamente pelo modo de produção, que estaria ligado ao processo e à disseminação das idéias que sustentam suas práticas cotidianas de trabalho, que em geral constituem um “nadar contra a corrente”.
No entanto, no contexto cultural contemporâneo onde tudo se transforma imediatamente em mercadoria, os espaços legítimos para que os artistas realizem seus trabalhos com autonomia são cada vez menores ou mesmo inexistentes. Apesar disso a formulação de projetos de teatro de grupo, implica na luta pela conquista de um lugar de independência frente aos fenômenos hegemônicos oferecendo o grupo como alternativa de resistência.
Bibliografia
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FERNANDES, Silvia. Teatro de grupo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001
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TROTTA,Rosyane. Paradoxo do Teatro de grupo no Brasil. Dissertação de mestrado. ECA USP. 1998.
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