SOBRE O ENCONTRO
O Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo é um programa anual de reflexão teórico-prática que reúne artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros. É realizado pelo Instituto Itaú Cultural com apoio do British Council, Consulado Geral da França, Goethe Institut – São Paulo e Centro Cultural da Espanha – Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento.
Desde sua 4ª edição, em 2006, o encontro debate a experiência de teatro de grupo no Brasil. Um conselho formado por Antonio Araujo, José Fernando de Azevedo e Maria Tendlau assina o recorte curatorial desde aquele ano, quando o foco principal foi a questão: “O que é o teatro de grupo e qual é o espaço onde os coletivos teatrais se inserem artística, política e economicamente?”. Em 2007, objetivou-se identificar a relação entre as formas de organização e a poética dos grupos, e se iniciou um compartilhamento de práticas de criação com participantes de 50 grupos de teatro.
Em 2008 aprofundou-se o debate sobre experiência e forma na produção do teatro de grupo no Brasil. Além da programação em São Paulo, o Próximo Ato organizou encontros em Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, promovendo a articulação entre artistas e campos artísticos e coletando, organizando e analisando informações sobre a arte e a cultura brasileiras de maneira descentralizada.
Agora, na edição 2009, retomamos esse percurso com encontros em Brasília, reunindo 25 grupos da região centro-oeste, e em Belém, com 30 grupos do norte. O encontro nacional acontece em novembro, na sede do Itaú Cultural, em São Paulo, com representantes de grupos dos 27 estados brasileiros. Assim se encerra o ciclo de 4 anos de discussões sobre a experiência do teatro de grupo no Brasil.
2009
TEATRO DE GRUPO: FORMAS DE CONVÍVIO E AMADURECIMENTO
A sétima edição propõe um debate acerca das formas de convívio engendradas no interior dos coletivos teatrais e de como estas formas garantem ou não um amadurecimento potente destes grupos. Nicolas Bourriaud, em Estética Relacional, afirma “Sabe-se que as atitudes se tornam formas; agora, deve-se levar em conta que as formas induzem modelos de sociabilidade”.
Foram convidados dois representantes de teatro de grupo dos 26 estados, além de 80 grupos paulistas para o encontro nacional. Serão lançados os livros Estética Relacional e Pós-Produção – Como a Arte Reprograma o Mundo Contemporâneo, do crítico de arte e curador francês Nicolas Bourriaud, e Escritura Política no Texto Teatral, do teórico e ensaísta alemão Hans-Thies Lehmann. Esses autores, assim como o filósofo Paulo Arantes, o psicanalista Eduardo Losicer, o pesquisador Óscar Cornago e a performer Eleonora Fabião, guiam o encontro.
O Próximo Ato afirma-se como programa nacional e intensifica a cooperação internacional entre o Itaú Cultural, o Centro Cultural da Espanha − São Paulo (Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento − Aecid), o Conselho Britânico, o Consulado Geral da França e o Goethe-Institut São Paulo. O instituto agradece o apoio do Centro Cultural São Paulo, que disponibiliza salas para as vivências práticas; da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace), que traz Hans-Thies Lehmann e Óscar Cornago a São Paulo, da Editora Perspectiva, que promove o lançamento do livro desse pensador alemão; da editora Martins Martins Fontes, que apoia o lançamento dos livros e a participação de Nicolas Bourriaud; e finalmente dos grupos Teatro de Narradores, Teatro da Vertigem e Grupo XIX de Teatro, que abrem suas sedes para encontros de discussão.
Sonia Sobral
Gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Personalidades
FONTE:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia
ANTUNES FILHO (1929)
José Alves Antunes Filho (São Paulo SP 1929). Diretor. Pertence à primeira geração de encenadores brasileiros, discípulo dos diretores do Teatro Brasileiro de Comédia. Participa ativamente do movimento de renovação cênica surgido nos anos 1960 e fins de 1970. É o primeiro diretor a empreender uma obra dramatúrgica e cenicamente autoral, com a montagem de Macunaíma, espetáculo considerado referência para os jovens encenadores dos anos 1980. Nos anos 1990, desloca suas preocupações para o Centro de Pesquisas Teatrais - CPT, grupo de produção, formação e desenvolvimento de novos conceitos e exercícios na busca do refinamento de um método próprio de interpretação para o ator.
Em 1952, ingressa como assistente de direção no Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, onde tem a oportunidade de observar os trabalhos dos diretores Ziembinski, Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e Flaminio Bollini, todos estrangeiros, contratados para desenvolver, preparar e especializar a equipe da companhia. Estréia profissionalmente, em 1953, com a montagem de Week-end, de Noel Coward, encenada no Teatro Íntimo Nicette Bruno. O texto é uma comédia inteligente, apoiada num humor requintado, cuja montagem recebe tratamento natural e acelerado, consequência direta do ritmo inusitado e frenético imposto por Antunes Filho aos ensaios.
No fim dos anos 1950, funda e dirige a companhia Pequeno Teatro de Comédia, que estréia em 1958, espetáculo O Diário de Anne Frank, tendo a atriz Dália Palma como protagonista. Pelo trabalho de montagem, Antunes Filho é premiado como melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Artes - APCA e pela Associação Carioca de Críticos Teatrais - ACCT. Dirige, em 1959, Alô...36-5499, de Abílio Pereira de Almeida, com assistência de direção de Ademar Guerra, marcando o início de uma parceria longa e de diversas montagens. Esse espetáculo representa, no momento, um desafio - conciliar o desejo de trabalhar com um texto nacional e com o aprofundamento de sua pesquisa estética ao retorno financeiro. Logo após encena Pic Nic, de William Inge. Nos três espetáculos explorando as fronteiras estéticas do realismo, Antunes Filho alcança a coesão pretendida para as encenações, o que lhe rende reconhecimento e afirma o seu talento como diretor. A virada da companhia, contudo, vem com Plantão 21, de Sidney Kingsley, ambientado numa delegacia de polícia, motivo para uma movimentação constante de 30 atores vivendo situações de violência e crua exposição dos conflitos. A excelente exploração cênica de Antunes Filho permite uma condução quase cinematográfica no desempenho dos atores. Nessa peça, Jardel Filho se destaca entre os atores de um elenco, que também presencia a estréia de Laura Cardoso.
Viaja à Itália em 1960, para um estágio com Giorgio Strehler no Piccolo Teatro de Milão. De volta ao Brasil, dirige um polêmica montagem de As Feiticeiras de Salém. O texto de Arthur Miller, de um realismo psicológico bem construído, é, paradoxalmente, tratado pela direção com uma abordagem épica, desnorteando crítica e público.
O último espetáculo encenado pelo Pequeno Teatro de Comédia, em 1961, é Sem Entrada, Sem Mais Nada, de Roberto Freire, fruto das pesquisas e discussões realizadas no Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, sobre a vida proletária a partir de um enfoque marxista e tendo à frente do elenco a atriz Eva Wilma. A peça é montada no palco do Teatro Maria Della Costa - TMDC, onde Maria Bonomi, colaboradora da companhia desde a montagem anterior, elabora a cenografia de uma habitação coletiva distribuída em cinco planos. Apesar de o programa da peça classificar a encenação como expressionista, a montagem de Antunes Filho é de um realismo enfatizado pelo depuramento formal, resultando num espetáculo teatralista, "canto do cisne" do Pequeno Teatro de Comédia, que enfrenta dura crise financeira.
Em 1962, com uma carreira sedimentada como um dos diretores mais destacados do período, volta ao TBC e encena Yerma, de Federico García Lorca, com cenários e figurinos de Maria Bonomi, música de Diogo Pacheco e um formidável desempenho de Cleyde Yáconis.
Já nesse período se avolumam opiniões contraditórias sobre a sua forte personalidade. Para alguns atores, o tratamento autoritário e a exigência de uma disciplina exemplar por parte dos elencos frustram algumas carreiras. Para outros, resultam em desempenhos brilhantes e diferenciados. Para o diretor, o trabalho dos atores não se restringe ao estudo das personagens: abarca todos os aspectos da montagem. Equipes são montadas para dar conta do estudo de um ângulo da obra, já que a base de seu método de trabalho é a busca do maior conhecimento possível sobre o universo da peça. Segundo Antunes Filho em entrevista concedida para o Diário de S. Paulo: "Se massacrar é obrigar o ator a estudar, a assumir responsabilidade do momento em que vive, é fazer do ator o senhor dentro do palco e dentro da história em que ele participa, então, nesse sentido, massacro o ator. Eu o quero independente, eu o quero senhor absoluto do palco (...) o ator terá que ser ao mesmo tempo cientista, artista, físico, matemático, professor de literatura, político e sociólogo. Pode ser meio utópico o que vou dizer, mas o ator será a grande síntese do conhecimento humano. (...) Se mostrar tudo isso ao ator é massacrar, então eu o massacro".1
Volta ao TBC, em 1964, para encenar Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, cujo processo de montagem submete o elenco a uma bateria de laboratórios físicos e psíquicos, na busca de um instinto e uma verdade que resultam num realismo chocante. O espetáculo divide público e crítica, e a polêmica faz com que a casa o retire bruscamente de cartaz. Os prejuízos contabilizados apressam o fim do TBC como empresa.
Antunes Filho tem seu primeiro contato com a obra de Nelson Rodrigues com a encenação de A Falecida, em 1965, na Escola de Arte Dramática - EAD. No mesmo ano, cria o Teatro da Esquina e com ele encena A Megera Domada, de Shakespeare, bem recebido pela crítica. O êxito não se repete em Júlio César, uma realização relâmpago, confusa e cheia de incidentes, unânime fracasso com direito a show de vaias em pleno Theatro Municipal de São Paulo. Em 1967, Black-Out, de Frederick Knott, recupera o prestígio de Antunes, e apresenta uma elogiada interpretação de Eva Wilma.
Segue-se A Cozinha,, 1968, de Arnold Wesker, que anuncia seu retorno ao teatralismo. Esse é o último trabalho que o diretor desenvolve com o Teatro da Esquina. Afasta-se do ambiente teatral em plena ascensão da contracultura, para realizar um projeto cinematográfico, Compasso de Espera, sobre as contradições do negro diante das questões raciais no país.
Em 1971, em contraponto ao teatro gestual e metafórico - desencadeado a partir da visita do Living Theatre a São Paulo - Antunes Filho realiza uma encenação de Peer Gynt, de Ibsen, uma retomada da palavra e um resgate da colocação do homem no centro dos acontecimentos. A crítica atribui à iniciativa muitos méritos, como se o advento representasse um manifesto perante as vanguardas do momento. É também nesse ano, em consequência das perseguições e censura inflingidas pelo Regime Militar às companhias de teatro, que o diretor cria a empresa Antunes Filho Produções Artísticas, que passa a responder juridicamente por suas realizações.
Depois de uma série de montagens grandiosas, dirige o monólogo Corpo a Corpo, de Oduvaldo Vianna Filho, com Juca de Oliveira, em 1972, e, no ano seguinte, Nossa Vida e Em Família, do mesmo autor, com elenco encabeçado por Paulo Autran. Para recuperar os gastos com a montagem anterior, realiza uma produção comercial, a comédia policial O Estranho Caso de Mr. Morgan, de Peter Shafer, última realização exclusiva da empresa, abrindo seus serviços para outros produtores. Sandro Polloni contrata-o para dirigir a volta de Maria Della Costa aos palcos, após três anos de ausência, em Bodas de Sangue, de Lorca.
Em 1974, encena pela segunda vez um texto Nelson Rodrigues, Bonitinha, mas Ordinária, onde se destaca a interpretação de Miriam Mehler. No trabalho consecutivo, seu radicalismo não encontra espaço de atuação, o que o leva a assistir o fracasso da montagem Tome Conta de Amélie, vaudeville de Feydeau, novamente com Maria Della Costa. Sentindo-se marginal no teatro, Antunes abre uma nova frente de pesquisa, transferindo para a televisão os objetivos de sua investigação estética. Na TV Cultura, tem liberdade para realizar suas experimentações numa série de teleteatros, dentre elas, a inesquecível adaptação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com Lilian Lemmertz no papel de Alaíde.
Mas Antunes persiste na busca por alternativas que o permitam produzir suas peças , o que o leva a montar, em 1975, uma cooperativa para encenar Ricardo III, de Shakespeare. Com essa montagem, "comédia tropicalista", viaja pelo Brasil, encerrando turnê no Theatro Municipal de São Paulo. A cooperativa termina ao fim da temporada.
Em seguida, dirige O Assalto, de José Vicente, produzida por Raul Cortez. Em 1977, encena Esperando Godot, de Beckett, com um elenco exclusivamente feminino. No ano seguinte, monta Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, produção novamente de Cortez, despedida do teatro convencional já que, no mesmo ano, realiza Macunaíma, que estréia em setembro de 1978, sua obra mais importante, dando uma virada radical em sua carreira.
Com o abrandamento da Censura e o clima de abertura, o teatro político ensaia seu retorno, enquanto, em contraponto, nascem outras tendências, entre elas as que expressam com irreverência o comportamento de uma nova geração, como o grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Após ter conduzido grandes atores, em interpretações inesquecíveis, Antunes volta-se para os jovens, com os quais passará a conviver permanentemente. Macunaíma surge de uma oficina teatral, em torno da obra de Mário de Andrade. Ensaia por quase um ano - aprimorando seu método de tornar os atores criadores de um processo e de uma linguagem -, com o Grupo de Arte Pau-Brasil, até chegar ao texto final, de Jacques Thiériot. Macunaíma abre as perspectivas para um novo e ousado processo de criação: não mais pesquisar o universo de um texto dramático, mas construir uma dramaturgia a partir de um texto literário. A encenação explora diversas dinâmicas de um teatro coletivo, alcançando os contornos míticos propostos pelo texto. Macunaíma torna-se o espetáculo brasileiro mais visto e aplaudido no exterior, visitando inúmeros países em todos os continentes, participando de festivais e ganhando prêmios internacionais. Aqui, é reconhecido como um marco da encenação. Espetáculo que inaugura uma abertura para o trabalho de jovens diretores. Esses, na década seguinte, construirão seus espetáculos a partir de um trabalho cênico com os atores, sempre com uma leitura muito autoral e que dialoga com as mudanças introduzidas por Antunes Filho.
O grupo cooperativado que cria Macunaíma sofre reformulações e passa a chamar-se Grupo Macunaíma. Com este, Antunes dá continuidade ao aprofundamento de sua pesquisa por meio das produções: Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno, 1981, reunindo quatro peças do autor, que são condensadas em Nelson 2 Rodrigues, 1982; Romeu e Julieta, 1984, de Shakespeare; Hora e a Vez de Augusto Matraga, 1986, baseada na obra de Guimarães Rosa; Xica da Silva, 1988, de Luís Alberto de Abreu; e Paraíso Zona Norte, mais dois textos de Nelson Rodrigues, 1989.
Para o crítico Yan Michalski, analisando a trajetória dessa fase pós-Macunaíma: "(...) são espetáculos que contêm uma base de gramática comum, simbolizada por um trecho da valsa Danúbio Azul, que ele adota como uma espécie de assinatura. Mas cada um possui perfil próprio, desenhado a partir de uma leitura pessoal do texto. Os três últimos inscreveram-se, por outro lado, na proclamada intenção de Antunes de empreender um estudo do homem brasileiro. Nem todos, na verdade, alcançam o mesmo padrão qualitativo: se Nelson 2 Rodrigues foi considerado por muitos até mesmo superior a Macunaíma, e fez, como este, triunfais tournées pelo exterior, Romeu e Julieta e sobretudo Xica da Silva foram recebidos com reservas. Mas, desde Macunaíma, qualquer nova realização de Antunes é um acontecimento excepcional, acima do padrão de excelência do teatro nacional; e o conjunto dos seus trabalhos da década de 80 leva o toque de um criador de admirável inventividade, rigor e apuro estético".2
Para viabilizar esse projeto de pesquisa, Antunes recebe subsídios do Serviço Social do Comércio - Sesc, conquistando, assim, uma infra-estrutura para a criação do Centro de Pesquisa Teatral - CPT, escola de formação e grupo permanente, ocupando o Sesc Vila Nova.
Nos anos 1990 os lançamentos prosseguem: Nova Velha História, 1991, texto construído em uma língua imaginária, tendo como base o conto infantil de Chapeuzinho Vermelho, de Grimm; Trono de Sangue, 1992, inspirado em Macbeth, de Shakespeare; Vereda da Salvação, 1993, sua segunda montagem do texto de Jorge Andrade; Gilgamesh, 1995, baseado na Epopéia de Gilgamesh, texto sumério escrito em 2.600 a.C.; Nas Trilhas da Transilvânia, 1995, uma leitura de Drácula e Drácula e Outros Vampiros, 1996, reformulação do espetáculo anterior. A partir de então, Antunes dedica-se mais exclusivamente aos trabalhos no CPT, formando atores que sejam simultaneamente intérpretes e dramaturgos. A série Prêt-à-Porter, exercícios de interpretação iniciados em 1998, ocupa essa nova empreitada, síntese da metodologia que desenvolve ao longo sua vida artística.
Em 2000 retorna às encenações, debruçando-se sobre as tragédias, realiza Fragmentos Troianos, inspirado em As Troianas, e, em 2001, Medéia, ambas de Eurípides.
Ainda na avaliação de Yan Michalski: "Antunes Filho é uma das figuras exponenciais do teatro brasileiro de hoje, talvez a única a integrar o restrito grupo internacional de encenadores que vêm renovando, obstinada e inspiradamente, a cena mundial. Incorporando no seu trabalho influências tão contraditórias como Bob Wilson, Tadeusz Kantor, Kasuo Ono, o expressionismo alemão, a psicanálise junguiana, a física moderna e, com crescente intensidade, a filosofia oriental, ele as funde numa escritura cênica de uma feroz coerência pessoal, com características ao mesmo tempo universais e brasileiras. Sua opção por trabalhar com atores jovens e inexperientes, lhe tem valido não poucas críticas (...). Mas este é um ônus que ele assume pagar para poder trabalhar num âmbito de liberdade de criação de que nenhum outro diretor brasileiro dispõe".3
Notas
1. ANTUNES FILHO. Entrevista do encenador ao Diário de São Paulo, 04 dez. 1973.
2. MICHALSKI, Yan. Antunes Filho. In: ______. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq.
3. Ibidem
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CIBELE FORJAZ (1966)
Cibele Forjaz Simões (São Paulo SP 1966). Diretora e iluminadora. Encenadora paulista integrada às mais inquietas correntes de pesquisa cênica a partir das décadas de 80 e 90.
Em sua formação, Cibele passa pelo Centro de Pesquisa Teatral, CPT, de Antunes Filho, e pelo curso de direção teatral da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP. Seus primeiros trabalhos são realizados com o grupo Barca de Dionisos, do qual é uma das fundadoras, juntamente com o diretor William Pereira.
Projeta-se como encenadora no espetáculo A Paixão Segundo GH, inspirado na obra de Clarice Lispector, levando Marilena Ansaldi a um brilhante desempenho, em 1989. No ano seguinte, encena O Lamento de Ariadne, de Beatriz Azevedo, ainda pelo grupo Barca de Dionisos. Em 1991, dirige Woyzeck, de Georg Büchner, numa grande instalação cenográfica de Marcos Pedroso, dentro de um estacionamento na Rua Augusta. No mesmo ano, encena Florbela, texto que Alcides Nogueira extrai da obra poética de Florbela Espanca, destacando Denise Del Vecchio no papel título.
Em 1994 cria uma ousada versão para Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, com o Núcleo de Pesquisa Teatral, grupo de São José dos Campos; voltando em 1997, com o mesmo elenco, à criação de Salve Manoel, Bandeira do Brasil!, baseada em poemas do escritor modernista. Ainda com esse conjunto encena, em 1998, A Vida de Galileu, de Bertolt Brecht, com Renato Borghi como protagonista.
Sua versão para Toda Nudez Será Castigada, um retorno à obra de Nelson Rodrigues, forma um novo grupo, a Companhia Livre, projetando a atriz Leona Cavalli, em realização de sucesso empreendida em 2000.
Uma versão brasileira para Woyzeck, texto de Georg Büchner, adaptado por Fernando Bonassi, estréia em 2002, no Rio de Janeiro, destacando Matheus Nachtergaele no desempenho central. Em São Paulo cria Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, consolidando Leona Cavalli entre as grandes jovens intérpretes dos últimos anos.
Como light designer sua carreira é pontuada de realizações expressivas. Desde sua estréia em Leonce e Lena, de Georg Büchner, em 1987, Cibele está presente em espetáculos marcantes, tais como Eras - Filoctetes/Horácio/Mauser, de Heiner Müller, direção de Marcio Aurelio; Fica Comigo Essa Noite, de Flávio de Souza, direção de Flávio de Souza; e Ópera Joyce, de Alcides Nogueira, direção de Marcio Aurelio, todas em 1988. No ano seguinte ilumina Essa Valsa é Minha, de William Luce, direção de Marcio Aurelio; O Burguês Fidalgo B, recriação do original de Molière, e Uma Relação Tão Delicada, de Loleh Bellon, ambas direção de William Pereira; Aoi, de Mishima, direção de Antônio Araújo. Nos anos seguintes está, entre outros, em O Amor de Dom Pirlimplim com Belisa em Seu Jardim, de Federico García Lorca, direção de Maria Alice Vergueiro, 1992; I Love Vladímir Maiakóvski e Lili Brik, texto e direção de Beatriz Azevedo; Viagem à Forlí, de Mauro Rasi. A partir de 1993 passa a integrar o Teatro Oficina, responsável pelas criações mais expressivas desde então: Ham-let, de William Shakespeare; Os Mistérios Gozozos, de Oswald de Andrade, 1994; As Bacantes, de Eurípides, 1995; Édipo de Tabas, adaptação de textos de Sêneca e Sófocles, direção de Renato Borghi, pelo Teatro Promíscuo; Para Dar um Fim no Juízo de Deus, de Antonin Artaud, 1996; Ela, de Jean Genet, 1997; Tio Vânia, de Anton Tchekhov, direção de Élcio Nogueira, com o Teatro Promíscuo; As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, direção de Bia Lessa; Cacilda!, texto e direção de José Celso Martinez Corrêa, todas em 1998.
Analisando a encenação de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, o crítico Alberto Guzik observa: "Cibele Forjaz e a cenógrafa e figurinista Simone Mina criaram no centro do amplo palco do Sesc Belenzinho uma espécie de gaiola delimitada por fitas elásticas brancas, e ali situaram o drama. O espetáculo é belo, fluente, permeado de um clima de sonho e melancolia acentuado pela música de Cacá Machado e pela luz de Alessandra Domingues, que dialoga com o realismo, mas não se limita a ele. (...) Um Bonde Chamado Desejo confirma o importante papel que a diretora Cibele Forjaz está desempenhando no teatro brasileiro contemporâneo".1
Notas
1. GUZIK, Alberto. 'Bonde' faz do público testemunha da violência. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 2002. Caderno 2.
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DENISE STOKLOS (1950)
Denise Stoklos (Irati PR 1950). Diretora, atriz e escritora. Intérprete de amplo repertório cênico e formação múltipla na área performática, Denise Stoklos atua, escreve e dirige seus espetáculos, que se caracterizam pela crítica à sociedade contemporânea e pela expressividade rebuscada.
Em 1968, enquanto cursa jornalismo na Universidade Federal do Paraná - UFPR e sociologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR, encena o primeiro trabalho autoral Círculo na Lua, Lama na Rua, no qual é responsável pelo texto, pela direção e pela cenografia. Ainda em Curitiba, participa de outras produções amadoras e faz duas substituições nos espetáculos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, ambos do Teatro de Arena, em temporada na cidade. Transfere-se para o Rio de Janeiro em 1973, e integra o elenco de Missa Leiga, montagem de Ademar Guerra. No ano seguinte, em São Paulo, faz Bonitinha, mas Ordinária, texto de Nelson Rodrigues, sob a direção de Antunes Filho. Em 1976, integra o elenco de Sai de Mim Tinhoso, uma colagem de textos de Bertolt Brecht dirigida por Luis Antônio Martinez Corrêa, e, em 1977, participa de Um Ponto de Luz, de Fauzi Arap, com a Royal Bexiga's Company.
Parte então para o exterior, passando por Israel e países da África e Europa. Em Londres faz cursos de mímica com Desmond Jones, de clown com Franki Anderson e de acrobacia com Eugênio Barba. A influência das especializações e as técnicas aprendidas levam Denise a produzir Three Women in High Heels, montagem que percorre diversas capitais européias, em 1979. Volta ao Brasil em 1980 e apresenta sua última criação, Denise Stoklos: One Woman Show, espetáculo solo cuja temática se estabelece em torno da maternidade e da natureza, misturando recursos de música e dança.
Em 1982, cria Elis Regina, peça sobre a obra da cantora, realizada pouco depois de sua morte. Passa breve temporada em Londres, voltando ao Brasil ainda em 1983 para encenar, sob a direção de Antônio Abujamra, Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, de Dario Fo e Franca Rame, obra solo com grande repercussão pública, sobretudo pelo uso de soluções mímicas e clownescas, sendo premiada com o Apetesp de melhor atriz.
Em 1987 parte para os Estados Unidos, onde cria Mary Stuart, lançado no Café La MaMa e trampolim para sua projeção internacional, além de fio condutor da produção Casa, espetáculo performático com o qual viaja diversos países, utilizando as línguas nacionais das regiões onde se apresenta, o que consolida sua carreira no exterior. É também essa produção que a faz estabelecer as bases do "teatro essencial", construído sobre as relações reflexivas, que se dão dentro de uma dimensão temporal específica e que atuam sobre atores, personagens, texto, contexto e público.
Suas últimas criações vinculam-se, cada vez mais, a temas sociais e políticos, como Um Fax Para Cristóvão Colombo, em 1992, Amanhã Será Tarde, em 1994, Elogio, em 1995, baseada em escritos de Jorge Luis Borges, Desobediência Civil, na qual se apropria de textos do pré-anarquista Henri Thoreau, em 1998, Vozes Dissonantes, sobre os 500 anos do descobrimento do Brasil, no ano seguinte. A partir de 2001, se dedica a criação de espetáculos que dialogam com a produção de outras artistas, como Louise Bourgeois, espetáculo sobre a vida e obra da escultora francesa, apresentado novamente no La MaMa, em Nova York, e, no Rio de Janeiro, Calendário de Pedra, baseado no poema Book of Aniversary, da escritora norte-americana Gertrude Stein.
Ao apreciar seu trabalho, comenta o crítico Yan Michalski: "(...) por trás do resultado convincente está não só uma inteligência criativa, mas também uma técnica segura e variada. Gestos nítidos, precisos, desenhados com elegância; um domínio do corpo que permite extrair efeitos surpreendentes desse fundamento da gramática mímica que é a variação rítmica; um rosto expressivo, versátil, capaz de intensas mutações; e uma arguta escolha dos poucos objetos usados como apoios, quer se trate de máscaras ou de objetos de uso cotidiano transformados em símbolos".1
Notas
1. MICHALSKI, Yan. Denise Stoklos, uma artista do gesto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 2, 03 fev. 1981.
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GABRIEL VILLELA (1958)
Antônio Gabriel Santana Villela (Carmo do Rio Claro MG 1958). Diretor, cenógrafo e figurinista. Um dos talentosos e requisitados diretores surgidos na década de 1990, dotado de uma teatralidade barroca, vigorosa, com freqüentes apelos ao imaginário brasileiro.
Após formar-se como diretor teatral pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, estréia, em 1989, com o espetáculo Você Vai Ver o Que Você Vai Ver, de Raymond Queneau, primeira produção do grupo Circo Grafitti. Em seguida, dirige O Concílio do Amor, de Oscar Panizza, uma produção do grupo Boi Voador. Ainda em 1989, cria o espetáculo Relações Perigosas, uma adaptação teatral de Heiner Müller para a obra de Chordellos de Laclos, com atuação da atriz Ruth Escobar.
Com Vem Buscar-Me que Ainda Sou Teu, 1990, de Carlos Alberto Soffredini, recebe Apetesp de melhor cenografia e Molière e Shell de melhor diretor, a peça é uma dramatização da célebre canção O Ébrio, de Vicente Celestino. No mesmo ano, cria A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca, em que a atriz Regina Duarte interpreta o príncipe Segismundo.
A partir de 1992, inicia uma profícua relação com o grupo mineiro Galpão, encenando uma adaptação para a rua de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, empreendimento bem-sucedido que culmina em muitas viagens pelo Brasil e Europa, arrebatando diversos prêmios, considerado um marco da década de 1990.
Dirige A Guerra Santa, em 1993, uma versão brasileira de A Divina Comédia realizada por Luís Alberto de Abreu, tendo Beatriz Segall à frente do elenco e em 1994, A Falecida, de Nelson Rodrigues, com Maria Padilha. No ano seguinte cria, com o Galpão, A Rua da Amargura, texto de Eduardo Garrido que explora os ritos da Semana Santa nos circos-teatros, ganhando os prêmios Molière e Shell de melhor direção. Em 1995, dirige Marieta Severo, no espetáculo A Torre de Babel, de Fernando Arrabal.
Em 1996, dirigindo Renata Sorrah e Xuxa Lopes, realiza espetáculo a partir do texto Mary Stuart, de Schiller. No mesmo ano, estréia O Mambembe, de Artur Azevedo, uma produção do Teatro Popular do Sesi - TPS, encena Ventania, de Alcides Nogueira, e A Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza. E, com os atores do Teatro Castro Alves, na Bahia, cria uma versão multicultural para O Sonho, obra de August Strindberg.
Com atores do núcleo Glória, em 1997, no Rio de Janeiro, encena dois espetáculos polêmicos: Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca.
Em 1999 monta Replay, de Max Miller, e, em 2000, inaugura um série de retomadas da obra do dramaturgo e compositor Chico Buarque, com a montagem de A Ópera do Malandro. Em 2001, seguem-se mais duas realizações com texto de Chico Buarque, os musicais Os Saltimbancos e Gota d'Água, uma transposição de Medéia para o universo dos morros cariocas. Em 2002, lança A Ponte e a Água da Piscina, de Alcides Nogueira, onde J. C. Serroni desenha uma cenografia que sugere um espaço bombardeado, cercado por muros com cacos de vidro.
A encenação de Gabriel para Romeu e Julieta é uma das grandes montagens brasileiras do texto de Shakespeare, como destaca Alberto Guzik: "O mineiro Gabriel Villela mergulhou em suas memórias de infância. Buscou músicas de procissões e serenatas para compor a trilha sonora e encomendou a Luciana Buarque figurinos recriados a partir de velhas roupas de teatro. Usou vários elementos circenses para definir a estética do trabalho. Os atores se apresentam sobre pernas-de-pau ou caminham como se fossem equilibristas sobre a corda bamba. Esse Romeu e Julieta, interpretado com graça e arrebatamento pelo Grupo Galpão, ganha a plena dimensão quando apresentado na rua".1
Notas
1. GUZIK, Alberto. 'Romeu e Julieta', na montagem apaixonante do Grupo Galpão. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 12, 01 fev. 1994.
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GERALD THOMAS (1954)
Geraldo Thomas Sievers (Rio de Janeiro RJ 1954). Diretor. Polêmico encenador, criador de uma estética elaborada a partir do uso diferenciado de cada um dos recursos teatrais e orientada pelo conceito de "ópera seca", Gerald Thomas renova a cena brasileira nas décadas de 1980 e 1990.
A carreira de Gerald Thomas tem início em Londres, onde participa do grupo performático e multimídia Exploding Galaxy. No grupo amador Hoxton Theatre Company, realiza suas primeiras experiências como diretor. Vai para Nova York, e trabalha no La MaMa, espaço dedicado a encenações experimentais de todo o mundo, onde produz três espetáculos consecutivos, com textos de Samuel Beckett. Desde o primeiro projeto, Thomas visa uma proposta teatral, na qual a identificação emocional seja suprimida, dedicando-se a mostrar o pensamento como processo, e o processo como tempo e espaço da cena.
Os dois primeiros espetáculos que o diretor encena no Rio de Janeiro são remontagens. Quatro Vezes Beckett, 1985, em que acrescenta o texto Nada à Trilogia Beckett, e Quartett, 1986, em que retoma o texto de Heiner Müller, ambos com um ano de intervalo em relação à montagem americana. Com o primeiro, interpretado por Rubens Corrêa, Sergio Britto e Ítalo Rossi, numa produção do Teatro dos Quatro, recebe o Prêmio Molière. O segundo tem no elenco Tônia Carrero e, novamente, Sergio Britto. Em Carmem com Filtro, 1986, o diretor utiliza texto de sua autoria para o espetáculo, protagonizado em São Paulo por Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra, numa produção da Companhia Estável de Repertório - CER. O espetáculo e sua direção recebem o Prêmio Mambembe. No mesmo ano, cria um novo espaço cênico no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, e encena Eletra Com Creta, espetáculo radical e controverso, no qual, por meio e telas e luz, cria um efeito de edição cinematográfica.
Funda, em 1986, a Companhia de Ópera Seca, onde solidifica sua dramaturgia paródica e desconstrutivista. O texto, vinculado ao momento da cena, não obedece uma forma estática e se estabelece, muitas vezes, a partir de frases e comentários. Elemento recorrente de suas produções, a voz gravada do diretor comenta, em off, a ação. Em alguns espetáculos essa função se duplica, o protagonista funciona como um porta-voz do diretor. A trajetória de Gerald Thomas como diretor está também marcada por longas parcerias, com a cenógrafa Daniela Thomas, criando ambientes hipotéticos e mutáveis, como a biblioteca da Trilogia Kafka, e com a atriz Bete Coelho, protagonista de seguidas encenações, admirada por sua capacidade de sintetizar em sua atuação o exagero e a crítica, a dramaticidade e o distanciamento, princípios cênicos da interpretação valorizados pelo diretor. A Trilogia Kafka, 1988, uma interpretação livre dos textos do escritor theco Franz Kafka, encenada em São Paulo, confere ao diretor o Prêmio Molière. A pesquisadora Sílvia Fernandes analisa o papel preponderante da luz na encenação, segundo o qual "a iluminação transformava o espaço cênico num lugar mutante, onde as cenas curtas eram decupadas pela rapidez dos cortes bruscos, resultando em imagens intermitentes que lembravam filmes do princípio do século".1
Em 1989, estréiam Carmem com Filtro 2 e Mattogrosso, ópera assinada pelo diretor em parceria com o músico Philip Glass. Thomas volta a Beckett encenando Fim de Jogo, em 1990. No mesmo ano, encena M.O.R.T.E., onde Bete Coelho, que faz seu último espetáculo na companhia, encarna o próprio autor do espetáculo, como criador e criatura da cena que anima. Fernanda Torres assume o papel central dos três espetáculos seguintes: The Flash and Crash Days - Tempestade e Fúria, 1991, ao lado da mãe, a atriz Fernanda Montenegro, O Império das Meias Verdades, 1993, e UnGlauber, 1994. Em Nowhere Man, 1996, Luiz Damasceno protagoniza a versão de Thomas para o mito do homem que faz um trato com o Diabo, vendo em Fausto o artista que troca a alma pela fama. Ao remontar Quartett, ainda 1996, com Edilson Botelho e Ney Latorraca, transforma os dois personagens em açougueiros e os coloca em uma câmara frigorífica para abordar os limites de sobrevivência da espécie humana. Em 1997, estréia Os Reis do Iê-Iê-Iê, no Festival de Curitiba. No mesmo ano, em Belo Horizonte, encena A Breve Interrupção do Fim, com o Grupo de Dança 1º Ato. Em 1999, cria Ventriloquist, uma metáfora para a polifonia do discurso e, no ano seguinte, Tragédia Rave. Em 2000, estréia NxW (Nietsche x Wagner), e Esperando Beckett. O Príncipe de Copacabana e Deus Ex-Machina são montados em 2001 e, em 2003, encena Tristão e Isolda, de Richard Wagner, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Paralelamente às estréias brasileiras, Gerald Thomas encena espetáculos em outros países, principalmente na Alemanha.
Para o filósofo Gerd Bornheim, Gerald Thomas representa, no campo das discussões teatrais, mais do que um propositor de estéticas, mas "um pensador prático criador de uma Poética, ou seja, de um modo de produzir o novo".2
No último capítulo do livro que escreve sobre a obra do encenador, a pesquisadora Sílvia Fernandes conclui: "Sem território fixo, com espaço que se subleva à intervenção da luz, com a música impactante que desnorteia os sentidos, com os retalhos de personagens arrastados pelo ator com o narrador que é também encenador e, como ele, se recusa à narrativa, com os corpos de leitmotive seccionando a cena em minúsculas veias sentindo, com movimento construtivo em progresso, que leva o espetáculo seguinte a negar o anterior, a encenação de Thomas transforma o espectador em parceiro de um jogo libertário, feito sem regras fixas. Compõe um anteparo subversivo ao desejo, demasiado humano, de totalização".3
Notas
1. FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 23.
2. BORNHEIM, Gerd. In: CARMEM COM FILTRO 2. Direção Gerald Thomas; texto Gerd Bornheim. Rio de Janeiro, 1989. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado em 1989.
3. FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 298-299.
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LUIS OTAVIO BURNIER (1956-1995)
Luís Otávio Sartori Burnier Pessôa de Mello (São Paulo SP 1956 - Campinas SP 1995). Diretor e ator. Intérprete e performer de largos recursos, ligado à antropologia teatral, um dos fundadores e líder do grupo LUME.
Cursa artes plásticas no Conservatório Carlos Gomes de Campinas, formando-se em 1969, ali também freqüentando cursos de interpretação e direção teatral. Entre 1976 e 1980 faz o curso de estudos teatrais do Institut d'Etudes Theatrales da Sorbonne Nouvelle, Paris, França. Conhece as manifestações asiáticas em 1979, num curso sobre kathakali, no Centre Mandapa, e a Ópera de Pequim, com Mme. Tang (do Musée de l'Homme), na Sorbonne. Em 1983 inicia-se na Antropologia Teatral, através de um estágio com Tereza Nawrot, aprofundado, no ano seguinte, com Togeir Wethal e Roberta Carreri, no Odin Theatr de Eugênio Barba. Em 1985, obtém o mestrado na Sorbonne Nouvelle com uma tese sobre formação do ator. Nos três anos seguintes, faz cursos de mímica nas escolas de Etiènne Decroux e Jacques Le Coq, além de dança moderna com Cynthia Briggs.
Essa formação múltipla leva-o a ministrar aulas no curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, onde cria o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, LUME, iniciando a pesquisa e divulgação mais estruturada da antropologia teatral no país. Cria, dirige e interpreta muitos espetáculos, com destaque para Burna, 1974; La Statuaire Mobile, 1978; Curriculum, 1979, Hablando Com El Cuerpo, 1981, e Linguagem do Corpo, 1982. Em 1983 faz a direção de atores de Rei Lear, de Shakespeare, montagem de Celso Nunes para o Teatro dos Quatro.
Após a criação do LUME dirige Macário, 1984; Circo da Paz, de Juan Rulfo, em Campinas, 1986, e O Guarani, de Carlos Alberto Soffredini, em 1986, no Teatro Ruth Escobar. Em 1988 encena Kelbilim, O Cão da Divindade, solo do ator Carlos Simioni. Em 1991 encena Wolzen, uma adaptação livre da Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues. Em 1995 inicia a direção de Cnossos, com o ator Ricardo Puccetti, trabalho que não chega a concluir, falecendo em meio ao processo.
Burnier participa, ainda, de incontáveis eventos em diversas partes do mundo, ligados à pesquisa, ensino ou divulgação das técnicas da antropologia teatral. Torna-se membro da International School of Theatre Anthropology, ISTA, em 1992. É o tradutor brasileiro de duas importantes publicações: Além das Ilhas Flutuantes e A Arte Secreta do Ator - dicionário de antropologia teatral, ambos escritos por Eugênio Barba.
Analisando seu trabalho, anota a professora Suzi Frankl Sperber: "Com sensibilidade fina, atores e Luís Otávio apreenderam aquilo que caracteriza o universo dos simples do interior do Brasil. Este que parece arcaico e rústico, é uma sabedoria. Está no não dito, na ação, sobretudo nos gestos, na postura física, no corpo do excluído e das personagens. O que é dito não é representação: fundamentalmente é - dando força ao não dito. Este revela e ao mesmo tempo faculta a contemplação e a quietude. Entrelaça atores, personagens e público, num congraçamento que se assemelha a um ritual e com uma força e uma vitalidade que estão fazendo falta no cenário das artes cênicas".1
Notas
1. SPERBER, Suzi Frankl. O Lume, a pesquisa da arte de ator no Brasil e a expressão do sagrado. Revista do Lume, Campinas, n. 2, p. 56-61, 1999.
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RENATO COHEN (1956-2003)
Renato Cohen (Porto Alegre RS 1956 - São Paulo SP 2003). Diretor, performer e teórico. Pesquisador de arte e tecnologia, atua em São Paulo desde meados dos anos 80, um dos diretores mais conectados às inovações multimídias e performáticas.
Após realizar mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, com temas associados às técnicas da performance, Renato Cohen torna-se professor da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, respeitado como um especialista em tais domínios.
O grupo por ele dirigido, Orlando Furioso, possui como eixo de investigação a extensão do conceito de cena e de teatralização, incorporando recursos da performance, das artes plásticas, do cinema e dos audiovisuais, almejando encontrar uma obra de arte total. O grupo é precursor da associação entre arte e tecnologia no Brasil. As montagens do Orlando Furioso são pioneiras também, no uso de espaços não convencionais, utilizando bosques, galpões, piscinas e sites virtuais em suas montagens. Nesse sentido, a pesquisa volta-se para a espetacularidade da cena, a atuação performática, o uso de narrativas não-lineares que incorporam o acaso e o processo e as relações com o público.
Sua estréia dá-se com Magritte, o Espelho Vivo, em 1986, inspirado na obra de René Magritte, concebido para um espaço no Museu de Arte Contemporânea, MAC, utilizando parte das salas reservadas às Bienais, no Parque do Ibirapuera. A não-delimitação entre as linguagens empregadas cria a ambígua posição da obra entre teatro e performance. A crítica Mariângela Alves de Lima comenta o espetáculo: "Magritte, o Espelho Vivo, dialogava de modo original com a ilogicidade sugerida pela obra do artista belga. Mas associava à temática atemporal da psique profunda os recursos do vídeo e a alta definição corporal da performance. E foi especialmente notável, para um grupo iniciante, o acabamento técnico que se expressava por um trabalho coreográfico exigente e criativo e pela virtualidade que nada ficava a dever ao repertório surrealista consagrado".1
Sturm and Drang/Tempestade e Ímpeto, em 1991, é realizado no jardim da Casa Modernista, na Vila Mariana, abrindo-se no ambiente natural um discurso sobre os horizontes da criação poética.
Em 1995, Renato Cohen debruça-se sobre Vitória Sobre o Sol, segundo ele "uma recriação sobre repertórios do futurismo russo, nas obras de Velimir Khlébnikov, Maiakóvski, Malévitch e do místico Gurdjieff". Em 1997, concebe Ka-Poética, inspirado em Vélimir Khlébnikov, autor radical ligado às vanguardas russas do começo do século, com um novo grupo, denominado Ka. O trabalho foi concebido como "hipertexto épico" e produzido pelo Laboratório de Mídia da Unicamp. Ainda em 1997, avançando na pesquisa sobre as vanguardas históricas, cria Máquina Futurista, uma performance sobre arte e tecnologia, que integra a Mostra de Arte e Tecnologia do Itaú Cultural. O grupo de Renato Cohen torna-se um dos primeiros grupos brasileiros a realizar performances - em tempo real - para audiência na rede. Na mesma ocasião, com pacientes psiquiátricos, encena Ueinzz, Viagem à Babel, experiência limite com não-atores.
O texto de Gertrud Stein Dr. Faustus Liga a Luz, encenado com o grupo Ka, constitui-se em nova experiência com os limites da linguagem, em 1999. No mesmo ano, retoma o trabalho com o grupo Ueinzz, originado na vivência com pacientes psiquiátricos, criando Dedalus, e, em 2001, realiza com eles Gothan São Paulo, ambos "apresentados poucos dias para o público paulistano, mas suportadas por uma investigação teórica que contribui para procedimentos terapêuticos e para o campo da arte-educação".2
Como autor, Renato escreve A Performance Como Linguagem, primeira incursão brasileira sobre o tema, em 1989 e, dez anos depois, publica Work in Progress na Cena Contemporânea, obra que analisa realizações de criadores de vanguarda, como também resgata as origens nas pesquisas das vanguardas históricas.
Fazendo um artigo por ocasião do súbito falecimento do artista, a crítica Mariângela Alves de Lima analisa a contribuição de Renato Cohen: "Duas tábuas e uma paixão não seriam suficientes para o diretor, professor e teórico Renato Cohen, morto há uma semana. Sua última criação, definida como a busca de 'novas arenas de teatralização' projetava-se em direção ao espaço combinando representações presenciais feitas no Brasil com outras emitidas de outros pontos do planeta. Sintonizando com a vanguarda do século 20 revia, a cada trabalho, as matrizes teóricas e os suportes materiais da representação. O tempo pretérito do verbo, aliás, parece especialmente inadequado para esse artista focado no devir da arte cênica".3
Notas
1. LIMA, Mariângela Alves de. Um teatrólogo focado no futuro. São Paulo, O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 25 out. 2003.
2. Idem.
3. Idem.
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ULYSSES CRUZ (1952)
Ulysses Cruz (São Paulo SP 1952). Diretor. Encenador que desponta nos anos 80, marcado pela forte visualidade que imprime às realizações, partindo, preponderantemente, de adaptações de obras literárias para a cena.
Suas primeiras montagens são na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, onde monta O Coronel dos Coronéis, de Maurício Segall, em 1981, e o musical Lola Moreno, de Bráulio Pedroso, Geraldo Carneiro e John Neschling, em 1982.
Em 1983 torna-se diretor assistente de Antunes Filho no Centro de Pesquisa Teatral, CPT, colaborando numa remontagem de Macunaíma e nas criações de Nelson 2 Rodrigues e Romeu e Julieta, aprendizado que lhe permite alçar novos vôos criativos. Ali mesmo cria, em 1985, com o grupo Boi Voador, uma primorosa encenação de Velhos Marinheiros, inspirado em Jorge Amado. Desligado do CPT, o grupo inicia vida própria, elaborando em 1986 uma ousada versão para O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind. Ligado à Escola de Samba Vai-Vai, Ulysses cria enredos e desfiles nos anos de 1986 e 1987. Sobre seu trabalho nesse período declara o crítico Yan Michalski: "Um estilo próprio, no qual bem assimiladas influências das descobertas cênicas de Antunes fundem-se com uma empostação épica, e que alcançou em Os Velhos Marinheiros, adaptação de um romance de Jorge Amado, e O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind, um resultado interessante".1
Além de Fragmentos de um Discurso Amoroso, livre adaptação para a obra de Roland Barthes, em 1988; Ulysses desdobra-se em mais quatro encenações: com o grupo Boi Voador põe em cena Corpo de Baile, espetáculo que se apropria de arquétipos e figuras inspiradas em Guimarães Rosa; com renovado sopro poético cria, em São Paulo, A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, destacando Marcos Frota, Antônio Abujamra e Cleyde Yáconis nos desempenhos centrais; em Portugal elabora uma ousada versão para Henrique IV, de Luigi Pirandello; e, com o grupo Delta de Londrina, cria Erêndira, baseado em Gabriel García Márquez.
Em 1989 encena, destacando a atriz Renata Sorrah, Encontrarse, novamente de Luigi Pirandello, em controvertida montagem. No ano seguinte, encena A Secreta Obscenidade de Cada Dia, de Marco Antônio de la Parra, afirmando Antônio Abujamra em sua carreira de ator. Em comemoração ao vigésimo aniversário do Teatro Municipal de Santo André monta História do Soldado, de C. F. Ramuz e Igor Stravinsky, com a participação do Corpo de Baile Especial, Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, e dos atores Antonio Fagundes, Antônio Petrim, Cacá Carvalho, entre outros. Novamente com o Boi Voador, encena Pantaleão e as Visitadoras, adaptação do original de Mario Vargas Llosa, 1990, e El Señor Presidente, baseado em Miguel Angel Asturias, 1992. No mesmo ano realiza mais uma parceria com Antonio Fagundes: Macbeth, de William Shakespeare. Envereda, em 1994, numa personalíssima versão para Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Em 1995, para o Teatro Popular do Sesi, TPS, monta Péricles, Príncipe de Tiro, outro Shakespeare, com uma exuberante cenografia de Hélio Eichbauer. Rei Lear, em 1996, e Hamlet, destacando Marco Ricca em 1997, representam novas incursões sobre a obra shakespeariana. Nesse ano, é convidado a integrar o grupo de diretores da TV Globo.
Yan Michalski reafirma Ulysses Cruz como um dos artistas hegemônicos no teatro de encenação, próprio desse período: "Entre os diretores revelados na década de 80, Ulysses Cruz distingue-se pelo seu espírito experimental, preferindo trabalhar com elencos jovens e em cima de uma matéria-prima literária extraída de obras originalmente não teatrais; o que não o impediu de mostrar, por exemplo, em Cerimônia do Adeus, onde dirigia atores consagrados num texto escrito para o palco, um ofício sólido e um generoso sopro de inspiração. Com uma carreira profissional sólida, é um dos encenadores mais solicitados e respeitados de sua geração, conforme atestam os prêmios concedidos às suas montagens".2
Notas
1. MICHALSKI, Yan. Perfil Analítico dos anos 80. Rio de Janeiro: s.e., s.d. Material datilografado.
2. MICHALSKI, Yan. "Ulysses Cruz". In PEQUENA Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989.
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia
ANTUNES FILHO (1929)
José Alves Antunes Filho (São Paulo SP 1929). Diretor. Pertence à primeira geração de encenadores brasileiros, discípulo dos diretores do Teatro Brasileiro de Comédia. Participa ativamente do movimento de renovação cênica surgido nos anos 1960 e fins de 1970. É o primeiro diretor a empreender uma obra dramatúrgica e cenicamente autoral, com a montagem de Macunaíma, espetáculo considerado referência para os jovens encenadores dos anos 1980. Nos anos 1990, desloca suas preocupações para o Centro de Pesquisas Teatrais - CPT, grupo de produção, formação e desenvolvimento de novos conceitos e exercícios na busca do refinamento de um método próprio de interpretação para o ator.
Em 1952, ingressa como assistente de direção no Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, onde tem a oportunidade de observar os trabalhos dos diretores Ziembinski, Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e Flaminio Bollini, todos estrangeiros, contratados para desenvolver, preparar e especializar a equipe da companhia. Estréia profissionalmente, em 1953, com a montagem de Week-end, de Noel Coward, encenada no Teatro Íntimo Nicette Bruno. O texto é uma comédia inteligente, apoiada num humor requintado, cuja montagem recebe tratamento natural e acelerado, consequência direta do ritmo inusitado e frenético imposto por Antunes Filho aos ensaios.
No fim dos anos 1950, funda e dirige a companhia Pequeno Teatro de Comédia, que estréia em 1958, espetáculo O Diário de Anne Frank, tendo a atriz Dália Palma como protagonista. Pelo trabalho de montagem, Antunes Filho é premiado como melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Artes - APCA e pela Associação Carioca de Críticos Teatrais - ACCT. Dirige, em 1959, Alô...36-5499, de Abílio Pereira de Almeida, com assistência de direção de Ademar Guerra, marcando o início de uma parceria longa e de diversas montagens. Esse espetáculo representa, no momento, um desafio - conciliar o desejo de trabalhar com um texto nacional e com o aprofundamento de sua pesquisa estética ao retorno financeiro. Logo após encena Pic Nic, de William Inge. Nos três espetáculos explorando as fronteiras estéticas do realismo, Antunes Filho alcança a coesão pretendida para as encenações, o que lhe rende reconhecimento e afirma o seu talento como diretor. A virada da companhia, contudo, vem com Plantão 21, de Sidney Kingsley, ambientado numa delegacia de polícia, motivo para uma movimentação constante de 30 atores vivendo situações de violência e crua exposição dos conflitos. A excelente exploração cênica de Antunes Filho permite uma condução quase cinematográfica no desempenho dos atores. Nessa peça, Jardel Filho se destaca entre os atores de um elenco, que também presencia a estréia de Laura Cardoso.
Viaja à Itália em 1960, para um estágio com Giorgio Strehler no Piccolo Teatro de Milão. De volta ao Brasil, dirige um polêmica montagem de As Feiticeiras de Salém. O texto de Arthur Miller, de um realismo psicológico bem construído, é, paradoxalmente, tratado pela direção com uma abordagem épica, desnorteando crítica e público.
O último espetáculo encenado pelo Pequeno Teatro de Comédia, em 1961, é Sem Entrada, Sem Mais Nada, de Roberto Freire, fruto das pesquisas e discussões realizadas no Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, sobre a vida proletária a partir de um enfoque marxista e tendo à frente do elenco a atriz Eva Wilma. A peça é montada no palco do Teatro Maria Della Costa - TMDC, onde Maria Bonomi, colaboradora da companhia desde a montagem anterior, elabora a cenografia de uma habitação coletiva distribuída em cinco planos. Apesar de o programa da peça classificar a encenação como expressionista, a montagem de Antunes Filho é de um realismo enfatizado pelo depuramento formal, resultando num espetáculo teatralista, "canto do cisne" do Pequeno Teatro de Comédia, que enfrenta dura crise financeira.
Em 1962, com uma carreira sedimentada como um dos diretores mais destacados do período, volta ao TBC e encena Yerma, de Federico García Lorca, com cenários e figurinos de Maria Bonomi, música de Diogo Pacheco e um formidável desempenho de Cleyde Yáconis.
Já nesse período se avolumam opiniões contraditórias sobre a sua forte personalidade. Para alguns atores, o tratamento autoritário e a exigência de uma disciplina exemplar por parte dos elencos frustram algumas carreiras. Para outros, resultam em desempenhos brilhantes e diferenciados. Para o diretor, o trabalho dos atores não se restringe ao estudo das personagens: abarca todos os aspectos da montagem. Equipes são montadas para dar conta do estudo de um ângulo da obra, já que a base de seu método de trabalho é a busca do maior conhecimento possível sobre o universo da peça. Segundo Antunes Filho em entrevista concedida para o Diário de S. Paulo: "Se massacrar é obrigar o ator a estudar, a assumir responsabilidade do momento em que vive, é fazer do ator o senhor dentro do palco e dentro da história em que ele participa, então, nesse sentido, massacro o ator. Eu o quero independente, eu o quero senhor absoluto do palco (...) o ator terá que ser ao mesmo tempo cientista, artista, físico, matemático, professor de literatura, político e sociólogo. Pode ser meio utópico o que vou dizer, mas o ator será a grande síntese do conhecimento humano. (...) Se mostrar tudo isso ao ator é massacrar, então eu o massacro".1
Volta ao TBC, em 1964, para encenar Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, cujo processo de montagem submete o elenco a uma bateria de laboratórios físicos e psíquicos, na busca de um instinto e uma verdade que resultam num realismo chocante. O espetáculo divide público e crítica, e a polêmica faz com que a casa o retire bruscamente de cartaz. Os prejuízos contabilizados apressam o fim do TBC como empresa.
Antunes Filho tem seu primeiro contato com a obra de Nelson Rodrigues com a encenação de A Falecida, em 1965, na Escola de Arte Dramática - EAD. No mesmo ano, cria o Teatro da Esquina e com ele encena A Megera Domada, de Shakespeare, bem recebido pela crítica. O êxito não se repete em Júlio César, uma realização relâmpago, confusa e cheia de incidentes, unânime fracasso com direito a show de vaias em pleno Theatro Municipal de São Paulo. Em 1967, Black-Out, de Frederick Knott, recupera o prestígio de Antunes, e apresenta uma elogiada interpretação de Eva Wilma.
Segue-se A Cozinha,, 1968, de Arnold Wesker, que anuncia seu retorno ao teatralismo. Esse é o último trabalho que o diretor desenvolve com o Teatro da Esquina. Afasta-se do ambiente teatral em plena ascensão da contracultura, para realizar um projeto cinematográfico, Compasso de Espera, sobre as contradições do negro diante das questões raciais no país.
Em 1971, em contraponto ao teatro gestual e metafórico - desencadeado a partir da visita do Living Theatre a São Paulo - Antunes Filho realiza uma encenação de Peer Gynt, de Ibsen, uma retomada da palavra e um resgate da colocação do homem no centro dos acontecimentos. A crítica atribui à iniciativa muitos méritos, como se o advento representasse um manifesto perante as vanguardas do momento. É também nesse ano, em consequência das perseguições e censura inflingidas pelo Regime Militar às companhias de teatro, que o diretor cria a empresa Antunes Filho Produções Artísticas, que passa a responder juridicamente por suas realizações.
Depois de uma série de montagens grandiosas, dirige o monólogo Corpo a Corpo, de Oduvaldo Vianna Filho, com Juca de Oliveira, em 1972, e, no ano seguinte, Nossa Vida e Em Família, do mesmo autor, com elenco encabeçado por Paulo Autran. Para recuperar os gastos com a montagem anterior, realiza uma produção comercial, a comédia policial O Estranho Caso de Mr. Morgan, de Peter Shafer, última realização exclusiva da empresa, abrindo seus serviços para outros produtores. Sandro Polloni contrata-o para dirigir a volta de Maria Della Costa aos palcos, após três anos de ausência, em Bodas de Sangue, de Lorca.
Em 1974, encena pela segunda vez um texto Nelson Rodrigues, Bonitinha, mas Ordinária, onde se destaca a interpretação de Miriam Mehler. No trabalho consecutivo, seu radicalismo não encontra espaço de atuação, o que o leva a assistir o fracasso da montagem Tome Conta de Amélie, vaudeville de Feydeau, novamente com Maria Della Costa. Sentindo-se marginal no teatro, Antunes abre uma nova frente de pesquisa, transferindo para a televisão os objetivos de sua investigação estética. Na TV Cultura, tem liberdade para realizar suas experimentações numa série de teleteatros, dentre elas, a inesquecível adaptação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com Lilian Lemmertz no papel de Alaíde.
Mas Antunes persiste na busca por alternativas que o permitam produzir suas peças , o que o leva a montar, em 1975, uma cooperativa para encenar Ricardo III, de Shakespeare. Com essa montagem, "comédia tropicalista", viaja pelo Brasil, encerrando turnê no Theatro Municipal de São Paulo. A cooperativa termina ao fim da temporada.
Em seguida, dirige O Assalto, de José Vicente, produzida por Raul Cortez. Em 1977, encena Esperando Godot, de Beckett, com um elenco exclusivamente feminino. No ano seguinte, monta Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, produção novamente de Cortez, despedida do teatro convencional já que, no mesmo ano, realiza Macunaíma, que estréia em setembro de 1978, sua obra mais importante, dando uma virada radical em sua carreira.
Com o abrandamento da Censura e o clima de abertura, o teatro político ensaia seu retorno, enquanto, em contraponto, nascem outras tendências, entre elas as que expressam com irreverência o comportamento de uma nova geração, como o grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Após ter conduzido grandes atores, em interpretações inesquecíveis, Antunes volta-se para os jovens, com os quais passará a conviver permanentemente. Macunaíma surge de uma oficina teatral, em torno da obra de Mário de Andrade. Ensaia por quase um ano - aprimorando seu método de tornar os atores criadores de um processo e de uma linguagem -, com o Grupo de Arte Pau-Brasil, até chegar ao texto final, de Jacques Thiériot. Macunaíma abre as perspectivas para um novo e ousado processo de criação: não mais pesquisar o universo de um texto dramático, mas construir uma dramaturgia a partir de um texto literário. A encenação explora diversas dinâmicas de um teatro coletivo, alcançando os contornos míticos propostos pelo texto. Macunaíma torna-se o espetáculo brasileiro mais visto e aplaudido no exterior, visitando inúmeros países em todos os continentes, participando de festivais e ganhando prêmios internacionais. Aqui, é reconhecido como um marco da encenação. Espetáculo que inaugura uma abertura para o trabalho de jovens diretores. Esses, na década seguinte, construirão seus espetáculos a partir de um trabalho cênico com os atores, sempre com uma leitura muito autoral e que dialoga com as mudanças introduzidas por Antunes Filho.
O grupo cooperativado que cria Macunaíma sofre reformulações e passa a chamar-se Grupo Macunaíma. Com este, Antunes dá continuidade ao aprofundamento de sua pesquisa por meio das produções: Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno, 1981, reunindo quatro peças do autor, que são condensadas em Nelson 2 Rodrigues, 1982; Romeu e Julieta, 1984, de Shakespeare; Hora e a Vez de Augusto Matraga, 1986, baseada na obra de Guimarães Rosa; Xica da Silva, 1988, de Luís Alberto de Abreu; e Paraíso Zona Norte, mais dois textos de Nelson Rodrigues, 1989.
Para o crítico Yan Michalski, analisando a trajetória dessa fase pós-Macunaíma: "(...) são espetáculos que contêm uma base de gramática comum, simbolizada por um trecho da valsa Danúbio Azul, que ele adota como uma espécie de assinatura. Mas cada um possui perfil próprio, desenhado a partir de uma leitura pessoal do texto. Os três últimos inscreveram-se, por outro lado, na proclamada intenção de Antunes de empreender um estudo do homem brasileiro. Nem todos, na verdade, alcançam o mesmo padrão qualitativo: se Nelson 2 Rodrigues foi considerado por muitos até mesmo superior a Macunaíma, e fez, como este, triunfais tournées pelo exterior, Romeu e Julieta e sobretudo Xica da Silva foram recebidos com reservas. Mas, desde Macunaíma, qualquer nova realização de Antunes é um acontecimento excepcional, acima do padrão de excelência do teatro nacional; e o conjunto dos seus trabalhos da década de 80 leva o toque de um criador de admirável inventividade, rigor e apuro estético".2
Para viabilizar esse projeto de pesquisa, Antunes recebe subsídios do Serviço Social do Comércio - Sesc, conquistando, assim, uma infra-estrutura para a criação do Centro de Pesquisa Teatral - CPT, escola de formação e grupo permanente, ocupando o Sesc Vila Nova.
Nos anos 1990 os lançamentos prosseguem: Nova Velha História, 1991, texto construído em uma língua imaginária, tendo como base o conto infantil de Chapeuzinho Vermelho, de Grimm; Trono de Sangue, 1992, inspirado em Macbeth, de Shakespeare; Vereda da Salvação, 1993, sua segunda montagem do texto de Jorge Andrade; Gilgamesh, 1995, baseado na Epopéia de Gilgamesh, texto sumério escrito em 2.600 a.C.; Nas Trilhas da Transilvânia, 1995, uma leitura de Drácula e Drácula e Outros Vampiros, 1996, reformulação do espetáculo anterior. A partir de então, Antunes dedica-se mais exclusivamente aos trabalhos no CPT, formando atores que sejam simultaneamente intérpretes e dramaturgos. A série Prêt-à-Porter, exercícios de interpretação iniciados em 1998, ocupa essa nova empreitada, síntese da metodologia que desenvolve ao longo sua vida artística.
Em 2000 retorna às encenações, debruçando-se sobre as tragédias, realiza Fragmentos Troianos, inspirado em As Troianas, e, em 2001, Medéia, ambas de Eurípides.
Ainda na avaliação de Yan Michalski: "Antunes Filho é uma das figuras exponenciais do teatro brasileiro de hoje, talvez a única a integrar o restrito grupo internacional de encenadores que vêm renovando, obstinada e inspiradamente, a cena mundial. Incorporando no seu trabalho influências tão contraditórias como Bob Wilson, Tadeusz Kantor, Kasuo Ono, o expressionismo alemão, a psicanálise junguiana, a física moderna e, com crescente intensidade, a filosofia oriental, ele as funde numa escritura cênica de uma feroz coerência pessoal, com características ao mesmo tempo universais e brasileiras. Sua opção por trabalhar com atores jovens e inexperientes, lhe tem valido não poucas críticas (...). Mas este é um ônus que ele assume pagar para poder trabalhar num âmbito de liberdade de criação de que nenhum outro diretor brasileiro dispõe".3
Notas
1. ANTUNES FILHO. Entrevista do encenador ao Diário de São Paulo, 04 dez. 1973.
2. MICHALSKI, Yan. Antunes Filho. In: ______. Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 1989. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq.
3. Ibidem
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CIBELE FORJAZ (1966)
Cibele Forjaz Simões (São Paulo SP 1966). Diretora e iluminadora. Encenadora paulista integrada às mais inquietas correntes de pesquisa cênica a partir das décadas de 80 e 90.
Em sua formação, Cibele passa pelo Centro de Pesquisa Teatral, CPT, de Antunes Filho, e pelo curso de direção teatral da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP. Seus primeiros trabalhos são realizados com o grupo Barca de Dionisos, do qual é uma das fundadoras, juntamente com o diretor William Pereira.
Projeta-se como encenadora no espetáculo A Paixão Segundo GH, inspirado na obra de Clarice Lispector, levando Marilena Ansaldi a um brilhante desempenho, em 1989. No ano seguinte, encena O Lamento de Ariadne, de Beatriz Azevedo, ainda pelo grupo Barca de Dionisos. Em 1991, dirige Woyzeck, de Georg Büchner, numa grande instalação cenográfica de Marcos Pedroso, dentro de um estacionamento na Rua Augusta. No mesmo ano, encena Florbela, texto que Alcides Nogueira extrai da obra poética de Florbela Espanca, destacando Denise Del Vecchio no papel título.
Em 1994 cria uma ousada versão para Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, com o Núcleo de Pesquisa Teatral, grupo de São José dos Campos; voltando em 1997, com o mesmo elenco, à criação de Salve Manoel, Bandeira do Brasil!, baseada em poemas do escritor modernista. Ainda com esse conjunto encena, em 1998, A Vida de Galileu, de Bertolt Brecht, com Renato Borghi como protagonista.
Sua versão para Toda Nudez Será Castigada, um retorno à obra de Nelson Rodrigues, forma um novo grupo, a Companhia Livre, projetando a atriz Leona Cavalli, em realização de sucesso empreendida em 2000.
Uma versão brasileira para Woyzeck, texto de Georg Büchner, adaptado por Fernando Bonassi, estréia em 2002, no Rio de Janeiro, destacando Matheus Nachtergaele no desempenho central. Em São Paulo cria Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, consolidando Leona Cavalli entre as grandes jovens intérpretes dos últimos anos.
Como light designer sua carreira é pontuada de realizações expressivas. Desde sua estréia em Leonce e Lena, de Georg Büchner, em 1987, Cibele está presente em espetáculos marcantes, tais como Eras - Filoctetes/Horácio/Mauser, de Heiner Müller, direção de Marcio Aurelio; Fica Comigo Essa Noite, de Flávio de Souza, direção de Flávio de Souza; e Ópera Joyce, de Alcides Nogueira, direção de Marcio Aurelio, todas em 1988. No ano seguinte ilumina Essa Valsa é Minha, de William Luce, direção de Marcio Aurelio; O Burguês Fidalgo B, recriação do original de Molière, e Uma Relação Tão Delicada, de Loleh Bellon, ambas direção de William Pereira; Aoi, de Mishima, direção de Antônio Araújo. Nos anos seguintes está, entre outros, em O Amor de Dom Pirlimplim com Belisa em Seu Jardim, de Federico García Lorca, direção de Maria Alice Vergueiro, 1992; I Love Vladímir Maiakóvski e Lili Brik, texto e direção de Beatriz Azevedo; Viagem à Forlí, de Mauro Rasi. A partir de 1993 passa a integrar o Teatro Oficina, responsável pelas criações mais expressivas desde então: Ham-let, de William Shakespeare; Os Mistérios Gozozos, de Oswald de Andrade, 1994; As Bacantes, de Eurípides, 1995; Édipo de Tabas, adaptação de textos de Sêneca e Sófocles, direção de Renato Borghi, pelo Teatro Promíscuo; Para Dar um Fim no Juízo de Deus, de Antonin Artaud, 1996; Ela, de Jean Genet, 1997; Tio Vânia, de Anton Tchekhov, direção de Élcio Nogueira, com o Teatro Promíscuo; As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, direção de Bia Lessa; Cacilda!, texto e direção de José Celso Martinez Corrêa, todas em 1998.
Analisando a encenação de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, o crítico Alberto Guzik observa: "Cibele Forjaz e a cenógrafa e figurinista Simone Mina criaram no centro do amplo palco do Sesc Belenzinho uma espécie de gaiola delimitada por fitas elásticas brancas, e ali situaram o drama. O espetáculo é belo, fluente, permeado de um clima de sonho e melancolia acentuado pela música de Cacá Machado e pela luz de Alessandra Domingues, que dialoga com o realismo, mas não se limita a ele. (...) Um Bonde Chamado Desejo confirma o importante papel que a diretora Cibele Forjaz está desempenhando no teatro brasileiro contemporâneo".1
Notas
1. GUZIK, Alberto. 'Bonde' faz do público testemunha da violência. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 2002. Caderno 2.
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DENISE STOKLOS (1950)
Denise Stoklos (Irati PR 1950). Diretora, atriz e escritora. Intérprete de amplo repertório cênico e formação múltipla na área performática, Denise Stoklos atua, escreve e dirige seus espetáculos, que se caracterizam pela crítica à sociedade contemporânea e pela expressividade rebuscada.
Em 1968, enquanto cursa jornalismo na Universidade Federal do Paraná - UFPR e sociologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR, encena o primeiro trabalho autoral Círculo na Lua, Lama na Rua, no qual é responsável pelo texto, pela direção e pela cenografia. Ainda em Curitiba, participa de outras produções amadoras e faz duas substituições nos espetáculos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, ambos do Teatro de Arena, em temporada na cidade. Transfere-se para o Rio de Janeiro em 1973, e integra o elenco de Missa Leiga, montagem de Ademar Guerra. No ano seguinte, em São Paulo, faz Bonitinha, mas Ordinária, texto de Nelson Rodrigues, sob a direção de Antunes Filho. Em 1976, integra o elenco de Sai de Mim Tinhoso, uma colagem de textos de Bertolt Brecht dirigida por Luis Antônio Martinez Corrêa, e, em 1977, participa de Um Ponto de Luz, de Fauzi Arap, com a Royal Bexiga's Company.
Parte então para o exterior, passando por Israel e países da África e Europa. Em Londres faz cursos de mímica com Desmond Jones, de clown com Franki Anderson e de acrobacia com Eugênio Barba. A influência das especializações e as técnicas aprendidas levam Denise a produzir Three Women in High Heels, montagem que percorre diversas capitais européias, em 1979. Volta ao Brasil em 1980 e apresenta sua última criação, Denise Stoklos: One Woman Show, espetáculo solo cuja temática se estabelece em torno da maternidade e da natureza, misturando recursos de música e dança.
Em 1982, cria Elis Regina, peça sobre a obra da cantora, realizada pouco depois de sua morte. Passa breve temporada em Londres, voltando ao Brasil ainda em 1983 para encenar, sob a direção de Antônio Abujamra, Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, de Dario Fo e Franca Rame, obra solo com grande repercussão pública, sobretudo pelo uso de soluções mímicas e clownescas, sendo premiada com o Apetesp de melhor atriz.
Em 1987 parte para os Estados Unidos, onde cria Mary Stuart, lançado no Café La MaMa e trampolim para sua projeção internacional, além de fio condutor da produção Casa, espetáculo performático com o qual viaja diversos países, utilizando as línguas nacionais das regiões onde se apresenta, o que consolida sua carreira no exterior. É também essa produção que a faz estabelecer as bases do "teatro essencial", construído sobre as relações reflexivas, que se dão dentro de uma dimensão temporal específica e que atuam sobre atores, personagens, texto, contexto e público.
Suas últimas criações vinculam-se, cada vez mais, a temas sociais e políticos, como Um Fax Para Cristóvão Colombo, em 1992, Amanhã Será Tarde, em 1994, Elogio, em 1995, baseada em escritos de Jorge Luis Borges, Desobediência Civil, na qual se apropria de textos do pré-anarquista Henri Thoreau, em 1998, Vozes Dissonantes, sobre os 500 anos do descobrimento do Brasil, no ano seguinte. A partir de 2001, se dedica a criação de espetáculos que dialogam com a produção de outras artistas, como Louise Bourgeois, espetáculo sobre a vida e obra da escultora francesa, apresentado novamente no La MaMa, em Nova York, e, no Rio de Janeiro, Calendário de Pedra, baseado no poema Book of Aniversary, da escritora norte-americana Gertrude Stein.
Ao apreciar seu trabalho, comenta o crítico Yan Michalski: "(...) por trás do resultado convincente está não só uma inteligência criativa, mas também uma técnica segura e variada. Gestos nítidos, precisos, desenhados com elegância; um domínio do corpo que permite extrair efeitos surpreendentes desse fundamento da gramática mímica que é a variação rítmica; um rosto expressivo, versátil, capaz de intensas mutações; e uma arguta escolha dos poucos objetos usados como apoios, quer se trate de máscaras ou de objetos de uso cotidiano transformados em símbolos".1
Notas
1. MICHALSKI, Yan. Denise Stoklos, uma artista do gesto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 2, 03 fev. 1981.
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GABRIEL VILLELA (1958)
Antônio Gabriel Santana Villela (Carmo do Rio Claro MG 1958). Diretor, cenógrafo e figurinista. Um dos talentosos e requisitados diretores surgidos na década de 1990, dotado de uma teatralidade barroca, vigorosa, com freqüentes apelos ao imaginário brasileiro.
Após formar-se como diretor teatral pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, estréia, em 1989, com o espetáculo Você Vai Ver o Que Você Vai Ver, de Raymond Queneau, primeira produção do grupo Circo Grafitti. Em seguida, dirige O Concílio do Amor, de Oscar Panizza, uma produção do grupo Boi Voador. Ainda em 1989, cria o espetáculo Relações Perigosas, uma adaptação teatral de Heiner Müller para a obra de Chordellos de Laclos, com atuação da atriz Ruth Escobar.
Com Vem Buscar-Me que Ainda Sou Teu, 1990, de Carlos Alberto Soffredini, recebe Apetesp de melhor cenografia e Molière e Shell de melhor diretor, a peça é uma dramatização da célebre canção O Ébrio, de Vicente Celestino. No mesmo ano, cria A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca, em que a atriz Regina Duarte interpreta o príncipe Segismundo.
A partir de 1992, inicia uma profícua relação com o grupo mineiro Galpão, encenando uma adaptação para a rua de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, empreendimento bem-sucedido que culmina em muitas viagens pelo Brasil e Europa, arrebatando diversos prêmios, considerado um marco da década de 1990.
Dirige A Guerra Santa, em 1993, uma versão brasileira de A Divina Comédia realizada por Luís Alberto de Abreu, tendo Beatriz Segall à frente do elenco e em 1994, A Falecida, de Nelson Rodrigues, com Maria Padilha. No ano seguinte cria, com o Galpão, A Rua da Amargura, texto de Eduardo Garrido que explora os ritos da Semana Santa nos circos-teatros, ganhando os prêmios Molière e Shell de melhor direção. Em 1995, dirige Marieta Severo, no espetáculo A Torre de Babel, de Fernando Arrabal.
Em 1996, dirigindo Renata Sorrah e Xuxa Lopes, realiza espetáculo a partir do texto Mary Stuart, de Schiller. No mesmo ano, estréia O Mambembe, de Artur Azevedo, uma produção do Teatro Popular do Sesi - TPS, encena Ventania, de Alcides Nogueira, e A Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza. E, com os atores do Teatro Castro Alves, na Bahia, cria uma versão multicultural para O Sonho, obra de August Strindberg.
Com atores do núcleo Glória, em 1997, no Rio de Janeiro, encena dois espetáculos polêmicos: Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca.
Em 1999 monta Replay, de Max Miller, e, em 2000, inaugura um série de retomadas da obra do dramaturgo e compositor Chico Buarque, com a montagem de A Ópera do Malandro. Em 2001, seguem-se mais duas realizações com texto de Chico Buarque, os musicais Os Saltimbancos e Gota d'Água, uma transposição de Medéia para o universo dos morros cariocas. Em 2002, lança A Ponte e a Água da Piscina, de Alcides Nogueira, onde J. C. Serroni desenha uma cenografia que sugere um espaço bombardeado, cercado por muros com cacos de vidro.
A encenação de Gabriel para Romeu e Julieta é uma das grandes montagens brasileiras do texto de Shakespeare, como destaca Alberto Guzik: "O mineiro Gabriel Villela mergulhou em suas memórias de infância. Buscou músicas de procissões e serenatas para compor a trilha sonora e encomendou a Luciana Buarque figurinos recriados a partir de velhas roupas de teatro. Usou vários elementos circenses para definir a estética do trabalho. Os atores se apresentam sobre pernas-de-pau ou caminham como se fossem equilibristas sobre a corda bamba. Esse Romeu e Julieta, interpretado com graça e arrebatamento pelo Grupo Galpão, ganha a plena dimensão quando apresentado na rua".1
Notas
1. GUZIK, Alberto. 'Romeu e Julieta', na montagem apaixonante do Grupo Galpão. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 12, 01 fev. 1994.
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GERALD THOMAS (1954)
Geraldo Thomas Sievers (Rio de Janeiro RJ 1954). Diretor. Polêmico encenador, criador de uma estética elaborada a partir do uso diferenciado de cada um dos recursos teatrais e orientada pelo conceito de "ópera seca", Gerald Thomas renova a cena brasileira nas décadas de 1980 e 1990.
A carreira de Gerald Thomas tem início em Londres, onde participa do grupo performático e multimídia Exploding Galaxy. No grupo amador Hoxton Theatre Company, realiza suas primeiras experiências como diretor. Vai para Nova York, e trabalha no La MaMa, espaço dedicado a encenações experimentais de todo o mundo, onde produz três espetáculos consecutivos, com textos de Samuel Beckett. Desde o primeiro projeto, Thomas visa uma proposta teatral, na qual a identificação emocional seja suprimida, dedicando-se a mostrar o pensamento como processo, e o processo como tempo e espaço da cena.
Os dois primeiros espetáculos que o diretor encena no Rio de Janeiro são remontagens. Quatro Vezes Beckett, 1985, em que acrescenta o texto Nada à Trilogia Beckett, e Quartett, 1986, em que retoma o texto de Heiner Müller, ambos com um ano de intervalo em relação à montagem americana. Com o primeiro, interpretado por Rubens Corrêa, Sergio Britto e Ítalo Rossi, numa produção do Teatro dos Quatro, recebe o Prêmio Molière. O segundo tem no elenco Tônia Carrero e, novamente, Sergio Britto. Em Carmem com Filtro, 1986, o diretor utiliza texto de sua autoria para o espetáculo, protagonizado em São Paulo por Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra, numa produção da Companhia Estável de Repertório - CER. O espetáculo e sua direção recebem o Prêmio Mambembe. No mesmo ano, cria um novo espaço cênico no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, e encena Eletra Com Creta, espetáculo radical e controverso, no qual, por meio e telas e luz, cria um efeito de edição cinematográfica.
Funda, em 1986, a Companhia de Ópera Seca, onde solidifica sua dramaturgia paródica e desconstrutivista. O texto, vinculado ao momento da cena, não obedece uma forma estática e se estabelece, muitas vezes, a partir de frases e comentários. Elemento recorrente de suas produções, a voz gravada do diretor comenta, em off, a ação. Em alguns espetáculos essa função se duplica, o protagonista funciona como um porta-voz do diretor. A trajetória de Gerald Thomas como diretor está também marcada por longas parcerias, com a cenógrafa Daniela Thomas, criando ambientes hipotéticos e mutáveis, como a biblioteca da Trilogia Kafka, e com a atriz Bete Coelho, protagonista de seguidas encenações, admirada por sua capacidade de sintetizar em sua atuação o exagero e a crítica, a dramaticidade e o distanciamento, princípios cênicos da interpretação valorizados pelo diretor. A Trilogia Kafka, 1988, uma interpretação livre dos textos do escritor theco Franz Kafka, encenada em São Paulo, confere ao diretor o Prêmio Molière. A pesquisadora Sílvia Fernandes analisa o papel preponderante da luz na encenação, segundo o qual "a iluminação transformava o espaço cênico num lugar mutante, onde as cenas curtas eram decupadas pela rapidez dos cortes bruscos, resultando em imagens intermitentes que lembravam filmes do princípio do século".1
Em 1989, estréiam Carmem com Filtro 2 e Mattogrosso, ópera assinada pelo diretor em parceria com o músico Philip Glass. Thomas volta a Beckett encenando Fim de Jogo, em 1990. No mesmo ano, encena M.O.R.T.E., onde Bete Coelho, que faz seu último espetáculo na companhia, encarna o próprio autor do espetáculo, como criador e criatura da cena que anima. Fernanda Torres assume o papel central dos três espetáculos seguintes: The Flash and Crash Days - Tempestade e Fúria, 1991, ao lado da mãe, a atriz Fernanda Montenegro, O Império das Meias Verdades, 1993, e UnGlauber, 1994. Em Nowhere Man, 1996, Luiz Damasceno protagoniza a versão de Thomas para o mito do homem que faz um trato com o Diabo, vendo em Fausto o artista que troca a alma pela fama. Ao remontar Quartett, ainda 1996, com Edilson Botelho e Ney Latorraca, transforma os dois personagens em açougueiros e os coloca em uma câmara frigorífica para abordar os limites de sobrevivência da espécie humana. Em 1997, estréia Os Reis do Iê-Iê-Iê, no Festival de Curitiba. No mesmo ano, em Belo Horizonte, encena A Breve Interrupção do Fim, com o Grupo de Dança 1º Ato. Em 1999, cria Ventriloquist, uma metáfora para a polifonia do discurso e, no ano seguinte, Tragédia Rave. Em 2000, estréia NxW (Nietsche x Wagner), e Esperando Beckett. O Príncipe de Copacabana e Deus Ex-Machina são montados em 2001 e, em 2003, encena Tristão e Isolda, de Richard Wagner, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Paralelamente às estréias brasileiras, Gerald Thomas encena espetáculos em outros países, principalmente na Alemanha.
Para o filósofo Gerd Bornheim, Gerald Thomas representa, no campo das discussões teatrais, mais do que um propositor de estéticas, mas "um pensador prático criador de uma Poética, ou seja, de um modo de produzir o novo".2
No último capítulo do livro que escreve sobre a obra do encenador, a pesquisadora Sílvia Fernandes conclui: "Sem território fixo, com espaço que se subleva à intervenção da luz, com a música impactante que desnorteia os sentidos, com os retalhos de personagens arrastados pelo ator com o narrador que é também encenador e, como ele, se recusa à narrativa, com os corpos de leitmotive seccionando a cena em minúsculas veias sentindo, com movimento construtivo em progresso, que leva o espetáculo seguinte a negar o anterior, a encenação de Thomas transforma o espectador em parceiro de um jogo libertário, feito sem regras fixas. Compõe um anteparo subversivo ao desejo, demasiado humano, de totalização".3
Notas
1. FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 23.
2. BORNHEIM, Gerd. In: CARMEM COM FILTRO 2. Direção Gerald Thomas; texto Gerd Bornheim. Rio de Janeiro, 1989. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado em 1989.
3. FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 298-299.
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LUIS OTAVIO BURNIER (1956-1995)
Luís Otávio Sartori Burnier Pessôa de Mello (São Paulo SP 1956 - Campinas SP 1995). Diretor e ator. Intérprete e performer de largos recursos, ligado à antropologia teatral, um dos fundadores e líder do grupo LUME.
Cursa artes plásticas no Conservatório Carlos Gomes de Campinas, formando-se em 1969, ali também freqüentando cursos de interpretação e direção teatral. Entre 1976 e 1980 faz o curso de estudos teatrais do Institut d'Etudes Theatrales da Sorbonne Nouvelle, Paris, França. Conhece as manifestações asiáticas em 1979, num curso sobre kathakali, no Centre Mandapa, e a Ópera de Pequim, com Mme. Tang (do Musée de l'Homme), na Sorbonne. Em 1983 inicia-se na Antropologia Teatral, através de um estágio com Tereza Nawrot, aprofundado, no ano seguinte, com Togeir Wethal e Roberta Carreri, no Odin Theatr de Eugênio Barba. Em 1985, obtém o mestrado na Sorbonne Nouvelle com uma tese sobre formação do ator. Nos três anos seguintes, faz cursos de mímica nas escolas de Etiènne Decroux e Jacques Le Coq, além de dança moderna com Cynthia Briggs.
Essa formação múltipla leva-o a ministrar aulas no curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, onde cria o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, LUME, iniciando a pesquisa e divulgação mais estruturada da antropologia teatral no país. Cria, dirige e interpreta muitos espetáculos, com destaque para Burna, 1974; La Statuaire Mobile, 1978; Curriculum, 1979, Hablando Com El Cuerpo, 1981, e Linguagem do Corpo, 1982. Em 1983 faz a direção de atores de Rei Lear, de Shakespeare, montagem de Celso Nunes para o Teatro dos Quatro.
Após a criação do LUME dirige Macário, 1984; Circo da Paz, de Juan Rulfo, em Campinas, 1986, e O Guarani, de Carlos Alberto Soffredini, em 1986, no Teatro Ruth Escobar. Em 1988 encena Kelbilim, O Cão da Divindade, solo do ator Carlos Simioni. Em 1991 encena Wolzen, uma adaptação livre da Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues. Em 1995 inicia a direção de Cnossos, com o ator Ricardo Puccetti, trabalho que não chega a concluir, falecendo em meio ao processo.
Burnier participa, ainda, de incontáveis eventos em diversas partes do mundo, ligados à pesquisa, ensino ou divulgação das técnicas da antropologia teatral. Torna-se membro da International School of Theatre Anthropology, ISTA, em 1992. É o tradutor brasileiro de duas importantes publicações: Além das Ilhas Flutuantes e A Arte Secreta do Ator - dicionário de antropologia teatral, ambos escritos por Eugênio Barba.
Analisando seu trabalho, anota a professora Suzi Frankl Sperber: "Com sensibilidade fina, atores e Luís Otávio apreenderam aquilo que caracteriza o universo dos simples do interior do Brasil. Este que parece arcaico e rústico, é uma sabedoria. Está no não dito, na ação, sobretudo nos gestos, na postura física, no corpo do excluído e das personagens. O que é dito não é representação: fundamentalmente é - dando força ao não dito. Este revela e ao mesmo tempo faculta a contemplação e a quietude. Entrelaça atores, personagens e público, num congraçamento que se assemelha a um ritual e com uma força e uma vitalidade que estão fazendo falta no cenário das artes cênicas".1
Notas
1. SPERBER, Suzi Frankl. O Lume, a pesquisa da arte de ator no Brasil e a expressão do sagrado. Revista do Lume, Campinas, n. 2, p. 56-61, 1999.
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RENATO COHEN (1956-2003)
Renato Cohen (Porto Alegre RS 1956 - São Paulo SP 2003). Diretor, performer e teórico. Pesquisador de arte e tecnologia, atua em São Paulo desde meados dos anos 80, um dos diretores mais conectados às inovações multimídias e performáticas.
Após realizar mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, com temas associados às técnicas da performance, Renato Cohen torna-se professor da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, respeitado como um especialista em tais domínios.
O grupo por ele dirigido, Orlando Furioso, possui como eixo de investigação a extensão do conceito de cena e de teatralização, incorporando recursos da performance, das artes plásticas, do cinema e dos audiovisuais, almejando encontrar uma obra de arte total. O grupo é precursor da associação entre arte e tecnologia no Brasil. As montagens do Orlando Furioso são pioneiras também, no uso de espaços não convencionais, utilizando bosques, galpões, piscinas e sites virtuais em suas montagens. Nesse sentido, a pesquisa volta-se para a espetacularidade da cena, a atuação performática, o uso de narrativas não-lineares que incorporam o acaso e o processo e as relações com o público.
Sua estréia dá-se com Magritte, o Espelho Vivo, em 1986, inspirado na obra de René Magritte, concebido para um espaço no Museu de Arte Contemporânea, MAC, utilizando parte das salas reservadas às Bienais, no Parque do Ibirapuera. A não-delimitação entre as linguagens empregadas cria a ambígua posição da obra entre teatro e performance. A crítica Mariângela Alves de Lima comenta o espetáculo: "Magritte, o Espelho Vivo, dialogava de modo original com a ilogicidade sugerida pela obra do artista belga. Mas associava à temática atemporal da psique profunda os recursos do vídeo e a alta definição corporal da performance. E foi especialmente notável, para um grupo iniciante, o acabamento técnico que se expressava por um trabalho coreográfico exigente e criativo e pela virtualidade que nada ficava a dever ao repertório surrealista consagrado".1
Sturm and Drang/Tempestade e Ímpeto, em 1991, é realizado no jardim da Casa Modernista, na Vila Mariana, abrindo-se no ambiente natural um discurso sobre os horizontes da criação poética.
Em 1995, Renato Cohen debruça-se sobre Vitória Sobre o Sol, segundo ele "uma recriação sobre repertórios do futurismo russo, nas obras de Velimir Khlébnikov, Maiakóvski, Malévitch e do místico Gurdjieff". Em 1997, concebe Ka-Poética, inspirado em Vélimir Khlébnikov, autor radical ligado às vanguardas russas do começo do século, com um novo grupo, denominado Ka. O trabalho foi concebido como "hipertexto épico" e produzido pelo Laboratório de Mídia da Unicamp. Ainda em 1997, avançando na pesquisa sobre as vanguardas históricas, cria Máquina Futurista, uma performance sobre arte e tecnologia, que integra a Mostra de Arte e Tecnologia do Itaú Cultural. O grupo de Renato Cohen torna-se um dos primeiros grupos brasileiros a realizar performances - em tempo real - para audiência na rede. Na mesma ocasião, com pacientes psiquiátricos, encena Ueinzz, Viagem à Babel, experiência limite com não-atores.
O texto de Gertrud Stein Dr. Faustus Liga a Luz, encenado com o grupo Ka, constitui-se em nova experiência com os limites da linguagem, em 1999. No mesmo ano, retoma o trabalho com o grupo Ueinzz, originado na vivência com pacientes psiquiátricos, criando Dedalus, e, em 2001, realiza com eles Gothan São Paulo, ambos "apresentados poucos dias para o público paulistano, mas suportadas por uma investigação teórica que contribui para procedimentos terapêuticos e para o campo da arte-educação".2
Como autor, Renato escreve A Performance Como Linguagem, primeira incursão brasileira sobre o tema, em 1989 e, dez anos depois, publica Work in Progress na Cena Contemporânea, obra que analisa realizações de criadores de vanguarda, como também resgata as origens nas pesquisas das vanguardas históricas.
Fazendo um artigo por ocasião do súbito falecimento do artista, a crítica Mariângela Alves de Lima analisa a contribuição de Renato Cohen: "Duas tábuas e uma paixão não seriam suficientes para o diretor, professor e teórico Renato Cohen, morto há uma semana. Sua última criação, definida como a busca de 'novas arenas de teatralização' projetava-se em direção ao espaço combinando representações presenciais feitas no Brasil com outras emitidas de outros pontos do planeta. Sintonizando com a vanguarda do século 20 revia, a cada trabalho, as matrizes teóricas e os suportes materiais da representação. O tempo pretérito do verbo, aliás, parece especialmente inadequado para esse artista focado no devir da arte cênica".3
Notas
1. LIMA, Mariângela Alves de. Um teatrólogo focado no futuro. São Paulo, O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 25 out. 2003.
2. Idem.
3. Idem.
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ULYSSES CRUZ (1952)
Ulysses Cruz (São Paulo SP 1952). Diretor. Encenador que desponta nos anos 80, marcado pela forte visualidade que imprime às realizações, partindo, preponderantemente, de adaptações de obras literárias para a cena.
Suas primeiras montagens são na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, onde monta O Coronel dos Coronéis, de Maurício Segall, em 1981, e o musical Lola Moreno, de Bráulio Pedroso, Geraldo Carneiro e John Neschling, em 1982.
Em 1983 torna-se diretor assistente de Antunes Filho no Centro de Pesquisa Teatral, CPT, colaborando numa remontagem de Macunaíma e nas criações de Nelson 2 Rodrigues e Romeu e Julieta, aprendizado que lhe permite alçar novos vôos criativos. Ali mesmo cria, em 1985, com o grupo Boi Voador, uma primorosa encenação de Velhos Marinheiros, inspirado em Jorge Amado. Desligado do CPT, o grupo inicia vida própria, elaborando em 1986 uma ousada versão para O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind. Ligado à Escola de Samba Vai-Vai, Ulysses cria enredos e desfiles nos anos de 1986 e 1987. Sobre seu trabalho nesse período declara o crítico Yan Michalski: "Um estilo próprio, no qual bem assimiladas influências das descobertas cênicas de Antunes fundem-se com uma empostação épica, e que alcançou em Os Velhos Marinheiros, adaptação de um romance de Jorge Amado, e O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind, um resultado interessante".1
Além de Fragmentos de um Discurso Amoroso, livre adaptação para a obra de Roland Barthes, em 1988; Ulysses desdobra-se em mais quatro encenações: com o grupo Boi Voador põe em cena Corpo de Baile, espetáculo que se apropria de arquétipos e figuras inspiradas em Guimarães Rosa; com renovado sopro poético cria, em São Paulo, A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, destacando Marcos Frota, Antônio Abujamra e Cleyde Yáconis nos desempenhos centrais; em Portugal elabora uma ousada versão para Henrique IV, de Luigi Pirandello; e, com o grupo Delta de Londrina, cria Erêndira, baseado em Gabriel García Márquez.
Em 1989 encena, destacando a atriz Renata Sorrah, Encontrarse, novamente de Luigi Pirandello, em controvertida montagem. No ano seguinte, encena A Secreta Obscenidade de Cada Dia, de Marco Antônio de la Parra, afirmando Antônio Abujamra em sua carreira de ator. Em comemoração ao vigésimo aniversário do Teatro Municipal de Santo André monta História do Soldado, de C. F. Ramuz e Igor Stravinsky, com a participação do Corpo de Baile Especial, Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, e dos atores Antonio Fagundes, Antônio Petrim, Cacá Carvalho, entre outros. Novamente com o Boi Voador, encena Pantaleão e as Visitadoras, adaptação do original de Mario Vargas Llosa, 1990, e El Señor Presidente, baseado em Miguel Angel Asturias, 1992. No mesmo ano realiza mais uma parceria com Antonio Fagundes: Macbeth, de William Shakespeare. Envereda, em 1994, numa personalíssima versão para Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Em 1995, para o Teatro Popular do Sesi, TPS, monta Péricles, Príncipe de Tiro, outro Shakespeare, com uma exuberante cenografia de Hélio Eichbauer. Rei Lear, em 1996, e Hamlet, destacando Marco Ricca em 1997, representam novas incursões sobre a obra shakespeariana. Nesse ano, é convidado a integrar o grupo de diretores da TV Globo.
Yan Michalski reafirma Ulysses Cruz como um dos artistas hegemônicos no teatro de encenação, próprio desse período: "Entre os diretores revelados na década de 80, Ulysses Cruz distingue-se pelo seu espírito experimental, preferindo trabalhar com elencos jovens e em cima de uma matéria-prima literária extraída de obras originalmente não teatrais; o que não o impediu de mostrar, por exemplo, em Cerimônia do Adeus, onde dirigia atores consagrados num texto escrito para o palco, um ofício sólido e um generoso sopro de inspiração. Com uma carreira profissional sólida, é um dos encenadores mais solicitados e respeitados de sua geração, conforme atestam os prêmios concedidos às suas montagens".2
Notas
1. MICHALSKI, Yan. Perfil Analítico dos anos 80. Rio de Janeiro: s.e., s.d. Material datilografado.
2. MICHALSKI, Yan. "Ulysses Cruz". In PEQUENA Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito, elaborado em projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989.
processo coletivo e processo colaborativo
PROCESSO COLETIVO E PROCESSO COLABORATIVO:
HORIZONTALIDADE E TEATRO DE GRUPO
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André Carreira e Daniel Olivetto. Respectivamente: Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado da Universidade do Estado de Santa Catarina) e diretor do Grupo (E)xperiência Subterrânea. PQ CNPq; e Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, graduando em Artes Cênicas pelo CEART- UDESC, ator e diretor da Cia. Experimentus (Itajaí – SC).
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Atualmente, no seio do movimento teatral da América Latina, a expressão teatro de grupo tem uma presença que indica novas tendências organizacionais que têm constituído um campo específico do fazer teatral. Diferentemente das estruturas grupais características do teatro dos anos 70, e começo dos anos 80 do século XX, onde o grupo definia-se como espaço de coletividade e, principalmente, de contestação aos regimes autoritários, o teatro de grupo nos nossos dias parece representar um modelo que se define mais pela articulação de projetos cênicos.
No caso do Brasil, o movimento do teatro de grupo foi o responsável pela introdução de prática de criações coletivas (o processo coletivo). Dessa forma, os grupos aparentemente levaram o ator para o centro dos processos criativos. Posteriormente a este fenômeno se deu, no período imediato da pós-ditadura, a chamada década dos encenadores. Já no começo dos anos 90, houve uma retomada das criações coletivizadas, no entanto, neste momento estas prática receberam o nome de processo colaborativo.
O teatro de grupo, e a implementação de processos coletivizados de produção e criação, têm se caracterizando pela contestação e resistência. Conseqüentemente, a reivindicação da coletividade representa a construção de um lócus de um teatro que se opõe radicalmente ao teatro de elenco e, fundamentalmente, ao ‘sistema da fama’, isto é, ao império da celebridade por sobre o discurso criativo da cena.
No seio das iniciativas (1) levadas a cabo pelos pesquisadores do Projeto O Teatro de Grupo e a Construção de Modelos de Trabalho de Ator, durante os anos de 2004 e 2005, foram coletadas informações que revelam diversas semelhanças no que diz respeito ao passado e ao contexto atual do teatro de grupo brasileiro. Entre estes elementos podemos citar: o ideal coletivo; projeto estético definido; necessidade da manutenção de um núcleo estável de pessoas; existência de comunhão e afetividade entre os membros do grupo; necessidade da coletividade; desenvolvimento de pesquisas de linguagem; tomada de decisões horizontalizada, e a presença de uma figura de diretor menos forte; e, principalmente, a existência de um trabalho continuado que se estenda além das montagens de espetáculos, configurando aquilo que seria definido como um trabalho colaborativo.
Esse conjunto de elementos representa um referencial para se delimitar a idéia de teatro de grupo que é reivindicada por um grande número de projetos coletivos que estão em funcionamento no país. O que caracteriza boa parte dos grupos teatrais atualmente é a busca por formas de organização do trabalho grupal que se sustentem em processos de pesquisas atorais, como elemento de base para a criação do texto dramático, e do espetáculo, de um modo geral. Cabe destacar, nestas práticas grupais, uma valorização da figura do ator na construção do objeto textual e na própria definição dos rumos da encenação em sua totalidade. Isso repercute de forma direta na instauração de processos criativos que adquirem a forma de processo coletivo ou de processo colaborativo. Nestes dois modos de trabalho, o ator passa a ser fundamental na criação da dramaturgia, e conseqüentemente cumpre uma função central na criação do espetáculo.
A pesquisadora Adélia Nicolete, referindo-se ao processo coletivo no Brasil, afirma que este diz respeito mais ao teatro da época da ditadura militar. Segundo ela, este tipo de criação era um processo “onde a figura do diretor como condutor absoluto foi questionada ou abolida e o intérprete tomava o centro do processo e dele irradiava a obra” (2003). Neste sentido, era comum que se apagassem as assinaturas individuais para a criação, isto é, a criação do texto e a direção passavam a ser assinadas pelo grupo.
No começo dos anos 90, começa a aparecer o uso do termo ‘processo colaborativo’, que segundo Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, seria “o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, os outros criadores, sem uma hierarquia nessa criação. O diretor não é mais importante que o dramaturgo, o dramaturgo não é mais importante que o ator e assim por diante” (Araújo apud Fischer 2005). O que o difere do processo coletivo, seria centralmente o fato de cada indivíduo assinar sua função, ainda que todos discutam os aspectos relativos ao trabalho dos outros. Portanto, no processo colaborativo, nos momentos de tomada de decisões polêmicas cada um responde por sua respectiva área, dando a ‘palavra final’.
Luís Alberto de Abreu, que tem uma extensa prática como dramaturgo, inclusive no momento de gênese do processo colaborativo, expõe uma possível evolução deste conceito:
"O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque nos anos 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo (...) A criação coletiva possuía, no entanto, alguns problemas de método. Um deles era a talvez excessiva informalidade do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos eram nebulosos e a experimentação criativa era vigorosa, não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria trajetória do processo". (FREITAS, 2004)
A denominação processo colaborativo é recente e, segundo Eduardo Freitas, cabe ressaltar que “não é exclusiva do dramaturgo [Abreu], pois resulta de uma prática adotada em fins da década de 90 por grupos de teatro de São Paulo, principalmente, e por dramaturgos como Fernando Bonassi, Hugo Possolo, Reinaldo Maia e Sérgio de Carvalho” (idem 2004).
Mas o que distinguiria o processo colaborativo da já experimentada criação coletiva? Segundo diferentes criadores, o processo colaborativo traz como diferencial a presença da figura do dramaturgo dentro do processo de trabalho. A ausência desta figura na criação coletiva, ou processo coletivo ocasionava, possivelmente, um acúmulo de experimentações cênicas que geravam discursos desorganizados, pela carência de um gesto que definisse um estrutura textual.
Neste sentido a experiência do Teatro Experimental de Cali (TEC), dirigido por Enrique Buenaventura, grande expoente da criação coletiva latino americana, indica que o lugar de criador da dramaturgia estava claramente preservado, e recaia sobre o próprio Buenaventura que reunia ainda o papel de diretor do grupo.
É interessante observar que se o ator pretendia, no processo da criação coletiva, fugir do predomínio do dramaturgo, e do texto ‘sacro santo’, no processo coletivo não pode escapar do olhar centralizador do diretor. Pode-se pensar que a predominância ora da figura do diretor, ora do autor, que interferem de forma decisiva nos processos propostos como experiência horizontais e frontalmente coletivizas, não esconderia realmente uma potencial deficiência desses modos coletivos. Seria inexorável para o funcionamento do espetáculo uma ação individual que organizasse finalmente o material coletivo?
A década de 80 caracterizou-se como um período de grande presença do diretor na definição dos rumos da cena nacional. O reaparecimento, nos anos 90, de um modo operacional baseado no coletivismo e na reivindicação de uma horizontalidade, que seria ponto de partida e ponto de chegada da criação, não poderia ser pensado como uma resposta à década dos encenadores? O centralismo do diretor aparentemente é discutido com a adoção de procedimentos e de poéticas horizontais. O processo colaborativo pode ser pensando também como um discurso político que ensaia um réquiem para os diretores, sem, no entanto, produzir nenhuma ação concreta que conduza ao enfraquecimento dessa figura que continua sendo fundamental na estruturação da cena nacional.
Essa horizontalidade experimentada tanto no processo coletivo como no processo colaborativo não implica no desaparecimento factual das funções que compõem os procedimentos básicos de criação teatral. Percebe-se que estas funções adquirem novas formas, pois são compartilhadas por diferentes membros dos grupos, ou até mesmo funcionam de modo rotativo. As funções estão presentes nos processos e são claramente reconhecidas pelas equipes de trabalho, mas tais funções não são assinadas por indivíduos que ficam particularizados na ficha técnica.
Os processos criativos aqui tratados direcionam o ator para um diálogo mais imperativo dentro da criação do texto e do conjunto do espetáculo. Isso determina que se reorganizem as posturas dos membros dos grupos de tal forma que os próprios fundamentos do espetáculo sofrem deslocamentos. Colocar o ator no centro do trabalho, como uma voz que define os fundamentos do mesmo, parece ser o embrião que permite surgir um gesto coletivo definido, que se diferencia das iniciativas criativas tradicionais.
Surge então a idéia de um ator ‘propositivo’. O estabelecimento de novos lugares para os sujeitos de uma criação, tal como afirma Antonio Araújo, faz desse ator, "um ator que já não é o ator da 'marca', é um ator propositivo, o ator que pensa, que discute os rumos do trabalho (...). Esse é um ator ligado ao conceito e discussão do trabalho com o todo. É um ator muito propositivo"(Araújo apud Fischer: 2005).
Neste quadro, rompe-se a autoridade da direção monolítica: o dramaturgo sai do gabinete e vai para a sala de ensaio; o ator discute a obra, dá idéias; e assim, todos os sujeitos do grupo passam a criar em conjunto. MENÇÃO A MONTAGEM----Parece haver aqui uma profunda relação com a idéia modelar do teatro de grupo. Trata-se, sobretudo, de uma nova organização do papel do ator na criação. De um executor de papéis ele passa a fazer parte da discussão da totalidade do espetáculo, daquilo que se quer ver em cena, coletivamente.
Em muitas produções do teatro de grupo existe uma ênfase nas criações que articulam processos coletivistas e isso reafirma a própria noção de grupalidade. O trabalho que reivindica uma poética do coletivo (mas não todo teatro um gesto coletivo?) busca um outro diálogo com o conjunto da criação teatral, e pretende desfazer as fronteiras que a rigidez das funções criativas estabeleceu no teatro.
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Nota
(1) Foram realizadas diversas entrevistas nas cidades de Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo e Florianópolis, com 32 conjuntos teatrais conformados a pelo menos cinco anos.
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Referências
ARAÚJO, Antônio; GARCIA, Silvana; GUEDES, Antônio; SAADI, Fátima. O Teatro da Vertigem e o Radical Brasil. In: Folhetim – Revista do Teatro do Pequeno Gesto. Rio de Janeiro: 2004.
CARREIRA, André L.A.N.; OLIVEIRA, Valéria. Teatro de Grupo: Modelo de Organização Geração de Poéticas. In: O Teatro Transcende – Revista do 17o FUTB. Blumenau: 2003.
FERNANDES, Silvia. A Criação Coletiva do Teatro. In: Urdimento – Revista de Estudos Sobre Teatro na América Latina. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, Nr. 2, Agosto, 1998.
FERRACINI, Renato. A Arte de Não Representar Como Poesia Corpórea do Ator. Campinas: Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2001.
FISCHER, Stela R. Processo colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras dos anos 90. Dissertação de Mestrado da Universidade Estadual de Campinas/SP: 2005.
FREITAS, Eduardo L. V. de (Eduardo Viveiros). Luis Alberto de Abreu e o Processo Colaborativo. Comunicação apresentada na XIIª Semana de Ciências Sociais da PUC-SP / 2004, no Grupo de Trabalho: História, Arte e Tecnologia.
GARCIA, Silvana. O Ator e Coletivo. In: O Teatro Transcende – Revista do 17o FUTB. Blumenau: 2003.
NICOLETE, Adélia. Dramaturgia em processo colaborativo e sua relação com a criação coletiva e o dramaturgismo. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas. Florianópolis: 2003
OLIVEIRA, Valéria. Teatro de Grupo: Noções, Matrizes e Contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis: 2005.
SILVEIRA, André. O Dramaturgo no Processo de Criação do Espetáculo Teatral: O Trabalho Solitário e o Trabalho Solidário. Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, 2004.
HORIZONTALIDADE E TEATRO DE GRUPO
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André Carreira e Daniel Olivetto. Respectivamente: Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado da Universidade do Estado de Santa Catarina) e diretor do Grupo (E)xperiência Subterrânea. PQ CNPq; e Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, graduando em Artes Cênicas pelo CEART- UDESC, ator e diretor da Cia. Experimentus (Itajaí – SC).
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Atualmente, no seio do movimento teatral da América Latina, a expressão teatro de grupo tem uma presença que indica novas tendências organizacionais que têm constituído um campo específico do fazer teatral. Diferentemente das estruturas grupais características do teatro dos anos 70, e começo dos anos 80 do século XX, onde o grupo definia-se como espaço de coletividade e, principalmente, de contestação aos regimes autoritários, o teatro de grupo nos nossos dias parece representar um modelo que se define mais pela articulação de projetos cênicos.
No caso do Brasil, o movimento do teatro de grupo foi o responsável pela introdução de prática de criações coletivas (o processo coletivo). Dessa forma, os grupos aparentemente levaram o ator para o centro dos processos criativos. Posteriormente a este fenômeno se deu, no período imediato da pós-ditadura, a chamada década dos encenadores. Já no começo dos anos 90, houve uma retomada das criações coletivizadas, no entanto, neste momento estas prática receberam o nome de processo colaborativo.
O teatro de grupo, e a implementação de processos coletivizados de produção e criação, têm se caracterizando pela contestação e resistência. Conseqüentemente, a reivindicação da coletividade representa a construção de um lócus de um teatro que se opõe radicalmente ao teatro de elenco e, fundamentalmente, ao ‘sistema da fama’, isto é, ao império da celebridade por sobre o discurso criativo da cena.
No seio das iniciativas (1) levadas a cabo pelos pesquisadores do Projeto O Teatro de Grupo e a Construção de Modelos de Trabalho de Ator, durante os anos de 2004 e 2005, foram coletadas informações que revelam diversas semelhanças no que diz respeito ao passado e ao contexto atual do teatro de grupo brasileiro. Entre estes elementos podemos citar: o ideal coletivo; projeto estético definido; necessidade da manutenção de um núcleo estável de pessoas; existência de comunhão e afetividade entre os membros do grupo; necessidade da coletividade; desenvolvimento de pesquisas de linguagem; tomada de decisões horizontalizada, e a presença de uma figura de diretor menos forte; e, principalmente, a existência de um trabalho continuado que se estenda além das montagens de espetáculos, configurando aquilo que seria definido como um trabalho colaborativo.
Esse conjunto de elementos representa um referencial para se delimitar a idéia de teatro de grupo que é reivindicada por um grande número de projetos coletivos que estão em funcionamento no país. O que caracteriza boa parte dos grupos teatrais atualmente é a busca por formas de organização do trabalho grupal que se sustentem em processos de pesquisas atorais, como elemento de base para a criação do texto dramático, e do espetáculo, de um modo geral. Cabe destacar, nestas práticas grupais, uma valorização da figura do ator na construção do objeto textual e na própria definição dos rumos da encenação em sua totalidade. Isso repercute de forma direta na instauração de processos criativos que adquirem a forma de processo coletivo ou de processo colaborativo. Nestes dois modos de trabalho, o ator passa a ser fundamental na criação da dramaturgia, e conseqüentemente cumpre uma função central na criação do espetáculo.
A pesquisadora Adélia Nicolete, referindo-se ao processo coletivo no Brasil, afirma que este diz respeito mais ao teatro da época da ditadura militar. Segundo ela, este tipo de criação era um processo “onde a figura do diretor como condutor absoluto foi questionada ou abolida e o intérprete tomava o centro do processo e dele irradiava a obra” (2003). Neste sentido, era comum que se apagassem as assinaturas individuais para a criação, isto é, a criação do texto e a direção passavam a ser assinadas pelo grupo.
No começo dos anos 90, começa a aparecer o uso do termo ‘processo colaborativo’, que segundo Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, seria “o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, os outros criadores, sem uma hierarquia nessa criação. O diretor não é mais importante que o dramaturgo, o dramaturgo não é mais importante que o ator e assim por diante” (Araújo apud Fischer 2005). O que o difere do processo coletivo, seria centralmente o fato de cada indivíduo assinar sua função, ainda que todos discutam os aspectos relativos ao trabalho dos outros. Portanto, no processo colaborativo, nos momentos de tomada de decisões polêmicas cada um responde por sua respectiva área, dando a ‘palavra final’.
Luís Alberto de Abreu, que tem uma extensa prática como dramaturgo, inclusive no momento de gênese do processo colaborativo, expõe uma possível evolução deste conceito:
"O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque nos anos 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo (...) A criação coletiva possuía, no entanto, alguns problemas de método. Um deles era a talvez excessiva informalidade do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos eram nebulosos e a experimentação criativa era vigorosa, não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria trajetória do processo". (FREITAS, 2004)
A denominação processo colaborativo é recente e, segundo Eduardo Freitas, cabe ressaltar que “não é exclusiva do dramaturgo [Abreu], pois resulta de uma prática adotada em fins da década de 90 por grupos de teatro de São Paulo, principalmente, e por dramaturgos como Fernando Bonassi, Hugo Possolo, Reinaldo Maia e Sérgio de Carvalho” (idem 2004).
Mas o que distinguiria o processo colaborativo da já experimentada criação coletiva? Segundo diferentes criadores, o processo colaborativo traz como diferencial a presença da figura do dramaturgo dentro do processo de trabalho. A ausência desta figura na criação coletiva, ou processo coletivo ocasionava, possivelmente, um acúmulo de experimentações cênicas que geravam discursos desorganizados, pela carência de um gesto que definisse um estrutura textual.
Neste sentido a experiência do Teatro Experimental de Cali (TEC), dirigido por Enrique Buenaventura, grande expoente da criação coletiva latino americana, indica que o lugar de criador da dramaturgia estava claramente preservado, e recaia sobre o próprio Buenaventura que reunia ainda o papel de diretor do grupo.
É interessante observar que se o ator pretendia, no processo da criação coletiva, fugir do predomínio do dramaturgo, e do texto ‘sacro santo’, no processo coletivo não pode escapar do olhar centralizador do diretor. Pode-se pensar que a predominância ora da figura do diretor, ora do autor, que interferem de forma decisiva nos processos propostos como experiência horizontais e frontalmente coletivizas, não esconderia realmente uma potencial deficiência desses modos coletivos. Seria inexorável para o funcionamento do espetáculo uma ação individual que organizasse finalmente o material coletivo?
A década de 80 caracterizou-se como um período de grande presença do diretor na definição dos rumos da cena nacional. O reaparecimento, nos anos 90, de um modo operacional baseado no coletivismo e na reivindicação de uma horizontalidade, que seria ponto de partida e ponto de chegada da criação, não poderia ser pensado como uma resposta à década dos encenadores? O centralismo do diretor aparentemente é discutido com a adoção de procedimentos e de poéticas horizontais. O processo colaborativo pode ser pensando também como um discurso político que ensaia um réquiem para os diretores, sem, no entanto, produzir nenhuma ação concreta que conduza ao enfraquecimento dessa figura que continua sendo fundamental na estruturação da cena nacional.
Essa horizontalidade experimentada tanto no processo coletivo como no processo colaborativo não implica no desaparecimento factual das funções que compõem os procedimentos básicos de criação teatral. Percebe-se que estas funções adquirem novas formas, pois são compartilhadas por diferentes membros dos grupos, ou até mesmo funcionam de modo rotativo. As funções estão presentes nos processos e são claramente reconhecidas pelas equipes de trabalho, mas tais funções não são assinadas por indivíduos que ficam particularizados na ficha técnica.
Os processos criativos aqui tratados direcionam o ator para um diálogo mais imperativo dentro da criação do texto e do conjunto do espetáculo. Isso determina que se reorganizem as posturas dos membros dos grupos de tal forma que os próprios fundamentos do espetáculo sofrem deslocamentos. Colocar o ator no centro do trabalho, como uma voz que define os fundamentos do mesmo, parece ser o embrião que permite surgir um gesto coletivo definido, que se diferencia das iniciativas criativas tradicionais.
Surge então a idéia de um ator ‘propositivo’. O estabelecimento de novos lugares para os sujeitos de uma criação, tal como afirma Antonio Araújo, faz desse ator, "um ator que já não é o ator da 'marca', é um ator propositivo, o ator que pensa, que discute os rumos do trabalho (...). Esse é um ator ligado ao conceito e discussão do trabalho com o todo. É um ator muito propositivo"(Araújo apud Fischer: 2005).
Neste quadro, rompe-se a autoridade da direção monolítica: o dramaturgo sai do gabinete e vai para a sala de ensaio; o ator discute a obra, dá idéias; e assim, todos os sujeitos do grupo passam a criar em conjunto. MENÇÃO A MONTAGEM----Parece haver aqui uma profunda relação com a idéia modelar do teatro de grupo. Trata-se, sobretudo, de uma nova organização do papel do ator na criação. De um executor de papéis ele passa a fazer parte da discussão da totalidade do espetáculo, daquilo que se quer ver em cena, coletivamente.
Em muitas produções do teatro de grupo existe uma ênfase nas criações que articulam processos coletivistas e isso reafirma a própria noção de grupalidade. O trabalho que reivindica uma poética do coletivo (mas não todo teatro um gesto coletivo?) busca um outro diálogo com o conjunto da criação teatral, e pretende desfazer as fronteiras que a rigidez das funções criativas estabeleceu no teatro.
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Nota
(1) Foram realizadas diversas entrevistas nas cidades de Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo e Florianópolis, com 32 conjuntos teatrais conformados a pelo menos cinco anos.
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Referências
ARAÚJO, Antônio; GARCIA, Silvana; GUEDES, Antônio; SAADI, Fátima. O Teatro da Vertigem e o Radical Brasil. In: Folhetim – Revista do Teatro do Pequeno Gesto. Rio de Janeiro: 2004.
CARREIRA, André L.A.N.; OLIVEIRA, Valéria. Teatro de Grupo: Modelo de Organização Geração de Poéticas. In: O Teatro Transcende – Revista do 17o FUTB. Blumenau: 2003.
FERNANDES, Silvia. A Criação Coletiva do Teatro. In: Urdimento – Revista de Estudos Sobre Teatro na América Latina. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, Nr. 2, Agosto, 1998.
FERRACINI, Renato. A Arte de Não Representar Como Poesia Corpórea do Ator. Campinas: Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2001.
FISCHER, Stela R. Processo colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras dos anos 90. Dissertação de Mestrado da Universidade Estadual de Campinas/SP: 2005.
FREITAS, Eduardo L. V. de (Eduardo Viveiros). Luis Alberto de Abreu e o Processo Colaborativo. Comunicação apresentada na XIIª Semana de Ciências Sociais da PUC-SP / 2004, no Grupo de Trabalho: História, Arte e Tecnologia.
GARCIA, Silvana. O Ator e Coletivo. In: O Teatro Transcende – Revista do 17o FUTB. Blumenau: 2003.
NICOLETE, Adélia. Dramaturgia em processo colaborativo e sua relação com a criação coletiva e o dramaturgismo. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas. Florianópolis: 2003
OLIVEIRA, Valéria. Teatro de Grupo: Noções, Matrizes e Contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis: 2005.
SILVEIRA, André. O Dramaturgo no Processo de Criação do Espetáculo Teatral: O Trabalho Solitário e o Trabalho Solidário. Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, 2004.
Após muitas tentativas o OPERÁRIO chega ao poder e é reeleito
Esperança de mudança significativa na vida social da população brasileira.
Ações assistencialistas (programas sociais), combate à inflação, a ampliação das exportações e a contenção de despesas.
Baixa inflação, taxa de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), redução do desemprego e constantes recordes da balança comercial. Incentivo às exportações, à diversificação dos investimentos feitos pelo BNDES, estimulou o micro-crédito e ampliou os investimentos na agricultura familiar através do PRONAF (Programa Nacional da Agricultura Familiar . O maior crescimento real do salário mínimo, resultando na recuperação do poder de compra do brasileiro.
Liquidação do pagamento das dívidas com o FMI
PAC (Programa de Aceleração do Crescimeto) visa a aceleração do ritmo de crescimento da economia brasileira
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que estabelece o objetivo de nivelar a educação brasileira com a dos países desenvolvidos até 2021 e prevê medidas até 2010
Teatro de Rua
TEATRO DE RUA: MITO E CRIAÇÃO NO BRASIL
André Luiz Antunes Netto Carreira
As ruas das cidades latino americanas apresentam, hoje em dia, uma grande diversidade de práticas teatrais que expressam um movimento espetacular recente, mas, sobre tudo dinâmico, que constitui um elemento fundamental para a compreensão dos discursos teatrais latino-americanos deste fim de século. As manifestações de teatro de rua que observamos no Brasil estão diretamente relacionadas com os processos de criação cujas raízes se relacionam com o período final do regime ditatorial, durante a chamada etapa de transição democrática dos anos 80.
Dado que o teatro de rua é percebido, antes de mais nada como uma prática artística que se contrapõe aos discursos autoritários - desde mesma forma de apropiação do espaço urbano - surge o interrogante de como os teatristas de rua se relacionaram e se enfrentaram ao regime militar e aos discursos autoritários que predominaram no país nas décadas de 60, 70 e 80, e articularam a reconstrução das práticas criativas do teatro de rua no seio do novo regime político de signo democrático.
Analisando a produção de teatro de rua do período dos primeiros anos posteriores à ditadura militar, observamos uma peculiaridade no processo de criação dos realizadores desta modalidade teatral: os jovens criadores surgidos no período democrático afirmavam, em seus discursos ideológicos, possuir vínculos históricos com as experiências teatrais de rua realizadas no período anterior ao golpe militar, e percebiam seus trabalhos como continuidade ou superação crítica das experiências anteriores, reconhecendo-se, assim como parte de uma tradição bem definida de teatro de rua.
Esta é uma curiosa situação, pois, se consideramos que durante o regime militar não houve um desenvolvimento amplo das práticas de teatro de rua, e que o intercâmbio com as experiências de outros países foi limitado, chama a atenção que os novos grupos fizessem referências a práticas artísticas às quais somente tiveram acesso de forma fragmentada, e em geral através de informações bibliográficas ou de fontes orais secundárias. Mas, é importante destacar que foram justamente estas imagens fragmentadas as que serviram como ponto de partida para a reconstrução do teatro de rua nos anos 80.
Isso ocorreu porque os grupos se lançaram a fazer teatro de rua a partir de 1984 construiram seus projetos e discursos com base a um processo de mitificação, que se articulou através de um pensamento dominante no teatro brasileiro que considerava que o teatro de rua é uma modalidade teatral fundamentalmente militante, que pertence ao campo de ação política da cultura popular, e se constituiu como instrumento privilegiado na reconstrução democrática do país.
Orientados por esta conceituação os grupos se organizaram e encontraram elementos de coesão para exercer sua prática teatral no espaço público. Esta concepção de teatro de rua, uma redução drástica do que significa esta modalidade teatral, operou como referencial, pois, este caráter político/popular funcionou como fator propiciante do retorno ao espaço da rua que constituiu um âmbito para o combate político dos artistas.
O teatro de rua surgido depois da ditadura militar foi fruto do esforço e tenacidade de uns poucos teatristas que se lançaram às ruas no calor do sentimento de liberdade que dominou a sociedade a partir das campanhas políticas que contribuiram para o fim da ditadura militar (Comitês pela Anistia, Diretas Já, etc.). Estes teatristas seguiram o caminho aberto pelos grupos que, nos anos 70, se propuseram criar espaços teatrais em comunidades e trabalharam em colaboração com organizações sindicais e políticas. Diversas apresentações destes grupos tiveram que ser realizadas em espaços abertos ganhando a forma de teatro de rua pela falta de espaços físicos apropiados. Mas, isso não consistiu numa prática sistemática de teatro de rua que funcionasse como modelos para os jovens criadores.
As limitações impostas pelos governos ditatoriais contribuiram para criar um grande vazio no que diz respeito a espetáculos teatrais na rua. Isso aprofundou a ruptura com os elementos do teatro ao ar livre próprios da tradição cultural brasileira.
No seio de uma sociedade que atravessava um período de transição política, os grupos procuraram um posicionamento político-social dentro de um panorama de transformação, e isso se deu no marco da definição do modelo teatral que cada grupo tomou como referência no seu processo de formação e produção.
Como o conjunto de experiências de teatro popular realizadas no Brasil deixou poucos registros, os jovens realizadores contavam apenas com informações fragmentadas ou de dificil acesso. Essa carência de modelos teatrais favoreceu a mitificação de algumas propostas que foram tomadas como paradigmas do teatro de rua. Uma memória fragmentada registrou apenas a existência de um teatro de rua com caráter militante e isso favoreceu a consolidação de um modelo teatral combativo em detrimento de outras formas teatrais, e plasmou um pensar que teve como referenciais principais os escritos de Augusto Boal e as propostas e realizações dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE).
Estes exponentes foram conduzidos à categoria míticas, e as figuras de Bertolt Brecht e Boal foram transformadas em ícones de um teatro (de rua) que deveria ser popular e, decisivamente político militante.
Aqui reside um elemento de muito interesse para a compreensão deste fenômeno: se tomamos o conceito do mito como "uma idéia-força que incita a uma resposta vital, a obrar em sua consecução ou consequência (ou a um não obrar, que é também uma forma do mesmo, um obrar invertido, por omissão intencional de resposta)" (Magrassi, 1980: 117) podemos considerar que o mito é um gerador de atitudes, e pode funcionar mobilizando ações concretas na vida social.
Este processo de mitificação impulsou os grupos a adotarem procedimentos e práticas que foram, em última análise, grandes responsáveis pelo ressurgimento do teatro de rua no Brasil. O processo mitificador funcionou através da eliminação das mediações existentes entre as práticas dos agentes mitificadores e seus discursos ideológicos. Como afirma Roland Barthes, o mito não oculta nada, sua função é de deformar, não de fazer desaparecer. O vínculo entre o sentido e o conceito do mito está dado porque o conceito aliena o sentido (Barthes, 1988). Esta alienação explica porque o mito não mantém o sentido original no seu conjunto, senão que a desapropiação é parte de uma descontextualização que gera uma deformação, e por isso um novo sentido, uma nova mensagem.
Este processo mitificador se deu no marco de uma atitude de resistência adotada pelos novos realizadores, e teve como consequência a busca da rua como espaço cênico e um espelhar-se nas experiências que, nos anos 60, tomaram como referenciais o teatro de agit-prop russo e as formulações de Erwin Piscator e Bertolt Brecht. De fato, podemos considerar que a experimentação dos anos 60 não foi muito além do emprego de fragmentos do discurso político e estético de Brecht e da utilização de alguns procedimentos próprios do agit-prop. Eles não adquiriram características de uma experimentação profunda em torno dos conceitos do teatro didático, ou mesmo das idéias das vanguardas políticas do teatro soviético.
Cabe refletir sobre a possibilidade desta apropiação parcializada enquanto parte de um projeto estético que propunha a articulação destas propostas estéticas citadas anteriormente com elementos próprios da cultura brasileira, como uma tentativa de construir um caminho novo dentro do marco cultural nacional. Este tipo de justificativa deve ser avaliado a partir de fatos concretos tais como a enorme carência, nos 60, de traduções ao português da obra de Brecht, e a pouca duração da vida dos CPCs (aproximadamente 2 anos).
Se dirigimos nossa atenção para os referentes mencionados, podemos notar que o movimento dos CPCs fez algumas tentativas com o fim de criar uma prática de colaboração estreita com as campanhas políticas da UNE. Segundo a historiadora Silvana Garcia observa "os CPCs dividiam suas produções em peças para o palco e teatro de rua (...). A experiência do teatro de rua é um pouco posterior, nascendo após frustadas tentativas de contato com outros públicos populares fora do âmbito da classe média da zona sul carioca" (Garcia, 1990: 102). Já as propostas e modelos teatrais descritos por Augusto Boal no seu livro Técnicas Latino-americanas de Teatro Popular de 1975, são apresentadas como um panorama de práticas teatrais características dos processos políticos-culturais do continente. No entanto, este livro que funcionou como referente para inúmeros grupos de toda a América Latina que procuravam um modelo de teatro revolucionário, não explicita o vínculo existente entre as "técnicas latino-americanas" e os referentes do agit-prop soviético.
As ações de grupos como o Oficina e o Arena estiveram circunscritas ao espaço teatral fechado das salas, e seu caráter politizante esteve restrito ao contato com um público fiel, comprometido politicamente, mas, reduzido a um setor de classe média (estudantes, profissionais liberais e intelectuais), ao qual não podemos considerar como experiências significantes de teatro popular. Não há dúvidas das repercussões políticas e estéticas das práticas teatrais destes dois grupos, mas, não se pode atribuir a eles mais que um papel estimulador para aqueles que se propunhama romper com as estruturas do mercado teatral e buscavam construir alternativas criativas polticamente comprometidas em novos espaços sociais. Os grupos paulistas de teatro de periferia nos anos 70 (Garcia, 1990) podem ser considerados exemplares no que se refere às suas tentativas no sentido de avançar em direção a um teatro popular de resistência a partir da aproximação com novos núcleos sociais e da utilização de diferentes tipos de espaços físicos.
A partir do exposto anteriormente, pode-se afirmar que o processo de mitificação instalado no anos 80 se estruturou tendo como ponto de partida uma idealização de uma produção teórica e/ou prática de alguns teatristas que haviam protagonizado uma apropiação parcial de modelos teatrais propostos nos primeiros anos do século XX.
Foi a urgente necessidade de preencher o vazio gerado pela ditadura militar que conduziu à escolha de modelos teatrais mencionados sem uma reflexão maior por parte dos grupos que saíram às ruas. O espaço aberto com a transição democrática, as crescentes manifestações políticas nas ruas pela democracia, em particular as passeatas estudantis por todo o país, e a presença dos operários metalúrgicos pela região do ABCD paulista estimularam diversos grupos teatrais a optar pela utilização de formas do teatro de rua. Silvana Garcia observa como grupos que haviam buscado fazer teatro em comunidades de periferia, se associaram rapidamente às lutas desatadas no final da década de 70. Em outras regiões do Brasil se observou a formação de grupos teatrais de estudantes que realizavam intervenções nas numerosas assembléias que proliferavam em todo os campi universitários. Estes grupos, em muitos casos acompanhavam os movimentos estudantis e sindicais quando estes ganharam às ruas.
Este processo foi muito intenso, em primeiro lugar porque ocorreu depois de um período de repressão e medo, e em segundo lugar porque os grupos se articularam impulsados por um movimento social que rapidamente ganhou espaço no conjunto da sociedade onde foi muito bem recebido. Assim, estes grupos ampliaram, forma quase instantânea, seu universo social. Num lapso de tempo muito curto, uma grande quantidade de novos grupos estava apresentando suas peças, na maioria das vezes de caráter emergencial, para públicos sempre dispostos a recebê-las bem, por reconhecer estas apresentações como importantes contribuições às suas causas. Ao mesmo tempo, para estes teatristas isto significava estreitar vínculos com o movimento social e concretizar assim a tarefa social do teatro.
Efetivamente, este processo foi complexo e crítico, porque se deu no marco de uma profunda crise do modelo de dominação política, e funcionou como uma avalanche que interferiu caoticamente na atividade de muitos grupos, conduzindo-os simultâneamente à realização espetacular e a crises organizativas terminais. Isso porque o novo marco cultural determinou a desestruturação e reorganização das formas de produzir dos grupos. No entanto, foram estas circunstâncias que propiciaram as mitificações que contribuiram com a recriação do teatra de rua no Brasil. A desinformação dos grupos teatrais é o primeiro elemento a se considerado, mas, as pressões políticas, a emergência do momento, e a paixão que aqueceu aquele período deram forma ao motor que empurrou os grupos a alçar mão de um discurso de justificação que se consolidou como prática mitificadora.
Não importou, portanto, se os referenciais mitificados cumpriram ou não uma determinada função na conformação de modelos teatrais, o fundamental foi que se tomou o suposto modelo de teatro de rua popular e militante como paradigma a ser emulado ou criticado radicalmente. Justamente aqui recai a força mobilizadora desta mitificação, pois foi ela que atuou influenciando a conformação de propostas estéticas que, atualmente, estão em funcionamento.
É bastante comum encontrar diretores de teatro de rua que mencionam diversas manifestações culturais populares como modelo de teatralidade de rua, assim, as diferentes formas do carnaval, o circo, e uma grande variedade de folguedos populares, são citados como referências para a criação. Mas, a questão que surge de imediato é: se essas formas efetivamente têm impacto nas propostas destes diretores ou são elementos necessários na elaboração de discursos ideológicos de justificação na construção de uma identidade? O caso do circo, especialmente as formas do circo-teatro, é exemplar pois, apesar de ser um elemento citado por diversos criadores como influência direta constitui hoje uma manifestação cultural de difícil localização no território nacional.
Identifico um mecanismo pelo qual diante da carência de modelos se operou atribuindo a um modelo escolhido, uma vigência atemporal que permitiu reinvindicá-lo e aplicá-lo à preparação de espetáculos para a rua. A lógica que se observa é: se os elementos do circo estavam relacionados com momentos tradicionais da nossa teatralidade também deveriam servir para reconstruir a identidade do teatro de rua enquanto modalidade popular, e portanto, as técnicas circenses poderiam ser reivindicadas enquanto elemento paradigmático para o treinamento do ator. Se o carnaval é nossa manifestação artística de rua por excelência, seu caráter lúdico e paródico pode ser aplicado à estrutura dramática do espetáculo teatral de rua.
Esta reivindicação da volta às origens não estaria relacionada com a valorização do produto artístico, com uma pretendida hierarquização do espetáculo? A pergunta surge a partir da constatação de que esta classe de justificativa aparece nos discursos de diversos grupos de teatro de rua do país e são coincidentes com o uso de vários elementos técnicos comumente utilizados pelos grupos europeus que visitaram a América do Sul a partir da segunda metade da década de 80.
A influência de Eugenio Barba marcou profundamente os grupos que fazem teatro de rua. Ian Watson diz que "os escritos teóricos de Barba sobre o Terceiro Teatro tiveram um grande peso devido a justificação intelectual que dão à existência de um teatro que está obrigado a viver marginalizado, (...) além disso a reputação de Barba, enquanto pioneiro de um teatro separado das vias institucionais ordinárias, tem sido fonte de apoio psicológico para muitos destes grupos (...) não há nenhuma evidência de que a única fonte de inspiração para estes grupos tenha sido o método do Odin Teatret de Barba, mas, não há dúvidas de que estes métodos têm servido como exemplos válidos" (Watson, 1989:4).
A partir do Encontro do Terceiro Teatro organizado por Barba em 1973 na Itália, e a subseqüente organização de encontros periódicos da International School of Theatre Antropological (ISTA) se difundiu pela Europa, e posteriormente pela a América Latina uma prática de revalorização dos espetáculos de rua com fusões de técnicas num espectro muito amplo, que vai desde exercício grotowskiano até a acrobacia circense.
Muitos dos elementos técnicos, tais como as formas para reunir e controlar uma grande quantidade de público, a técnicas das bandeiras, as personagens em pernas-de-pau, que também são características da linguagem circense e da carnavalesca, que aparecem abundantemente em vários espetáculos de rua, em grande parte são adaptados das encenações, dos filmes, ou das oficinas e palestras do Odin Teatret.
Esta influência se articulou e se viu reforçada pelo discurso de Barba que se apresentou no continente, afirmando que não queria fazer a revolução através do teatro, e que portanto, não reconhecia no teatro a capacidade de estimular transformações macro-sociais. Esta postura, explicitada no seu livro As Ilhas Flutuantes, foi reiterada em cursos e conferências, funcionando como ponto de apoio para vários realizadores brasileiros de teatro de rua, pois, esta negação do caráter militante do teatro, mas, não o político, ampliava a base de justificação daqueles diretores que buscavam novos paradigmas estéticos. Aqueles realizadores que haviam visto o teatro unicamente como uma manifestação política, e por isso mesmo o haviam repudiado, descobriram uma tradição a ser retomada e desenvolvida, uma tradição que recolocava a teatralidade como eixo do fenônemo espetcular.
O que se observou na segunda metade dos anos 80 foi uma combinação de fatores que favoreceu a retomada do teatro de rua, pois, a democratização do uso dos espaços públicos, relacionada com a trajetória iniciada pelos grupos no calor das lutas políticas, posteriormente referendada em um novo marco conceitual, criou as condições necessárias para que o teatro de rua ocupasse um novo lugar no panorama teatral brasileiro.
O teatro de rua, nos anos 90, é um desdobramento deste processo. Hoje em dia, é possível constatar o espaço conquistado por esta modalidade teatral a partir da existência de um número crescente de grupos em diversos estados do país, do acesso que estes grupos passaram a ter das fontes de financiamento, já seja através do apoio dos recursos estatais como da utilização de leis de incentivo fiscal, e também da incorporação de mostras de rua em importantes festivais teatrais no âmbito nacional.
BIBLIOGRÁFICAS
BACZKO, Bronislaw. Los Imaginarios Sociales. Ed. Nueva Visión. Buenos Aires. 1991.
BARTHES, Roland. Mitologias. Ed. Siglo XXI. México. 1988.
BOAL, Augusto. Técnicas Latinoamericanas de Teatro Popular. Corregidor. Buenos Aires. 1975.
CARREIRA, André. Teatro de Rua Depois dos Anos do Autoritarismo. Revista Cadernos de Classe. ___Universidade de Brasília. Nº. 0. 1988.
El Teatro Callejero. El Otro Teatro. Jorge Dubatti (Org.). Libros del Quirquincho. Buenos Aires. 1990.
El Teatro Callejero en la Ciudad de Buenos Aires. Latin American Theatr Review. Unversity of Kansas. ___Nº. 27/2. Spring 1994. p. 103-114.
André Luiz Antunes Netto Carreira
As ruas das cidades latino americanas apresentam, hoje em dia, uma grande diversidade de práticas teatrais que expressam um movimento espetacular recente, mas, sobre tudo dinâmico, que constitui um elemento fundamental para a compreensão dos discursos teatrais latino-americanos deste fim de século. As manifestações de teatro de rua que observamos no Brasil estão diretamente relacionadas com os processos de criação cujas raízes se relacionam com o período final do regime ditatorial, durante a chamada etapa de transição democrática dos anos 80.
Dado que o teatro de rua é percebido, antes de mais nada como uma prática artística que se contrapõe aos discursos autoritários - desde mesma forma de apropiação do espaço urbano - surge o interrogante de como os teatristas de rua se relacionaram e se enfrentaram ao regime militar e aos discursos autoritários que predominaram no país nas décadas de 60, 70 e 80, e articularam a reconstrução das práticas criativas do teatro de rua no seio do novo regime político de signo democrático.
Analisando a produção de teatro de rua do período dos primeiros anos posteriores à ditadura militar, observamos uma peculiaridade no processo de criação dos realizadores desta modalidade teatral: os jovens criadores surgidos no período democrático afirmavam, em seus discursos ideológicos, possuir vínculos históricos com as experiências teatrais de rua realizadas no período anterior ao golpe militar, e percebiam seus trabalhos como continuidade ou superação crítica das experiências anteriores, reconhecendo-se, assim como parte de uma tradição bem definida de teatro de rua.
Esta é uma curiosa situação, pois, se consideramos que durante o regime militar não houve um desenvolvimento amplo das práticas de teatro de rua, e que o intercâmbio com as experiências de outros países foi limitado, chama a atenção que os novos grupos fizessem referências a práticas artísticas às quais somente tiveram acesso de forma fragmentada, e em geral através de informações bibliográficas ou de fontes orais secundárias. Mas, é importante destacar que foram justamente estas imagens fragmentadas as que serviram como ponto de partida para a reconstrução do teatro de rua nos anos 80.
Isso ocorreu porque os grupos se lançaram a fazer teatro de rua a partir de 1984 construiram seus projetos e discursos com base a um processo de mitificação, que se articulou através de um pensamento dominante no teatro brasileiro que considerava que o teatro de rua é uma modalidade teatral fundamentalmente militante, que pertence ao campo de ação política da cultura popular, e se constituiu como instrumento privilegiado na reconstrução democrática do país.
Orientados por esta conceituação os grupos se organizaram e encontraram elementos de coesão para exercer sua prática teatral no espaço público. Esta concepção de teatro de rua, uma redução drástica do que significa esta modalidade teatral, operou como referencial, pois, este caráter político/popular funcionou como fator propiciante do retorno ao espaço da rua que constituiu um âmbito para o combate político dos artistas.
O teatro de rua surgido depois da ditadura militar foi fruto do esforço e tenacidade de uns poucos teatristas que se lançaram às ruas no calor do sentimento de liberdade que dominou a sociedade a partir das campanhas políticas que contribuiram para o fim da ditadura militar (Comitês pela Anistia, Diretas Já, etc.). Estes teatristas seguiram o caminho aberto pelos grupos que, nos anos 70, se propuseram criar espaços teatrais em comunidades e trabalharam em colaboração com organizações sindicais e políticas. Diversas apresentações destes grupos tiveram que ser realizadas em espaços abertos ganhando a forma de teatro de rua pela falta de espaços físicos apropiados. Mas, isso não consistiu numa prática sistemática de teatro de rua que funcionasse como modelos para os jovens criadores.
As limitações impostas pelos governos ditatoriais contribuiram para criar um grande vazio no que diz respeito a espetáculos teatrais na rua. Isso aprofundou a ruptura com os elementos do teatro ao ar livre próprios da tradição cultural brasileira.
No seio de uma sociedade que atravessava um período de transição política, os grupos procuraram um posicionamento político-social dentro de um panorama de transformação, e isso se deu no marco da definição do modelo teatral que cada grupo tomou como referência no seu processo de formação e produção.
Como o conjunto de experiências de teatro popular realizadas no Brasil deixou poucos registros, os jovens realizadores contavam apenas com informações fragmentadas ou de dificil acesso. Essa carência de modelos teatrais favoreceu a mitificação de algumas propostas que foram tomadas como paradigmas do teatro de rua. Uma memória fragmentada registrou apenas a existência de um teatro de rua com caráter militante e isso favoreceu a consolidação de um modelo teatral combativo em detrimento de outras formas teatrais, e plasmou um pensar que teve como referenciais principais os escritos de Augusto Boal e as propostas e realizações dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE).
Estes exponentes foram conduzidos à categoria míticas, e as figuras de Bertolt Brecht e Boal foram transformadas em ícones de um teatro (de rua) que deveria ser popular e, decisivamente político militante.
Aqui reside um elemento de muito interesse para a compreensão deste fenômeno: se tomamos o conceito do mito como "uma idéia-força que incita a uma resposta vital, a obrar em sua consecução ou consequência (ou a um não obrar, que é também uma forma do mesmo, um obrar invertido, por omissão intencional de resposta)" (Magrassi, 1980: 117) podemos considerar que o mito é um gerador de atitudes, e pode funcionar mobilizando ações concretas na vida social.
Este processo de mitificação impulsou os grupos a adotarem procedimentos e práticas que foram, em última análise, grandes responsáveis pelo ressurgimento do teatro de rua no Brasil. O processo mitificador funcionou através da eliminação das mediações existentes entre as práticas dos agentes mitificadores e seus discursos ideológicos. Como afirma Roland Barthes, o mito não oculta nada, sua função é de deformar, não de fazer desaparecer. O vínculo entre o sentido e o conceito do mito está dado porque o conceito aliena o sentido (Barthes, 1988). Esta alienação explica porque o mito não mantém o sentido original no seu conjunto, senão que a desapropiação é parte de uma descontextualização que gera uma deformação, e por isso um novo sentido, uma nova mensagem.
Este processo mitificador se deu no marco de uma atitude de resistência adotada pelos novos realizadores, e teve como consequência a busca da rua como espaço cênico e um espelhar-se nas experiências que, nos anos 60, tomaram como referenciais o teatro de agit-prop russo e as formulações de Erwin Piscator e Bertolt Brecht. De fato, podemos considerar que a experimentação dos anos 60 não foi muito além do emprego de fragmentos do discurso político e estético de Brecht e da utilização de alguns procedimentos próprios do agit-prop. Eles não adquiriram características de uma experimentação profunda em torno dos conceitos do teatro didático, ou mesmo das idéias das vanguardas políticas do teatro soviético.
Cabe refletir sobre a possibilidade desta apropiação parcializada enquanto parte de um projeto estético que propunha a articulação destas propostas estéticas citadas anteriormente com elementos próprios da cultura brasileira, como uma tentativa de construir um caminho novo dentro do marco cultural nacional. Este tipo de justificativa deve ser avaliado a partir de fatos concretos tais como a enorme carência, nos 60, de traduções ao português da obra de Brecht, e a pouca duração da vida dos CPCs (aproximadamente 2 anos).
Se dirigimos nossa atenção para os referentes mencionados, podemos notar que o movimento dos CPCs fez algumas tentativas com o fim de criar uma prática de colaboração estreita com as campanhas políticas da UNE. Segundo a historiadora Silvana Garcia observa "os CPCs dividiam suas produções em peças para o palco e teatro de rua (...). A experiência do teatro de rua é um pouco posterior, nascendo após frustadas tentativas de contato com outros públicos populares fora do âmbito da classe média da zona sul carioca" (Garcia, 1990: 102). Já as propostas e modelos teatrais descritos por Augusto Boal no seu livro Técnicas Latino-americanas de Teatro Popular de 1975, são apresentadas como um panorama de práticas teatrais características dos processos políticos-culturais do continente. No entanto, este livro que funcionou como referente para inúmeros grupos de toda a América Latina que procuravam um modelo de teatro revolucionário, não explicita o vínculo existente entre as "técnicas latino-americanas" e os referentes do agit-prop soviético.
As ações de grupos como o Oficina e o Arena estiveram circunscritas ao espaço teatral fechado das salas, e seu caráter politizante esteve restrito ao contato com um público fiel, comprometido politicamente, mas, reduzido a um setor de classe média (estudantes, profissionais liberais e intelectuais), ao qual não podemos considerar como experiências significantes de teatro popular. Não há dúvidas das repercussões políticas e estéticas das práticas teatrais destes dois grupos, mas, não se pode atribuir a eles mais que um papel estimulador para aqueles que se propunhama romper com as estruturas do mercado teatral e buscavam construir alternativas criativas polticamente comprometidas em novos espaços sociais. Os grupos paulistas de teatro de periferia nos anos 70 (Garcia, 1990) podem ser considerados exemplares no que se refere às suas tentativas no sentido de avançar em direção a um teatro popular de resistência a partir da aproximação com novos núcleos sociais e da utilização de diferentes tipos de espaços físicos.
A partir do exposto anteriormente, pode-se afirmar que o processo de mitificação instalado no anos 80 se estruturou tendo como ponto de partida uma idealização de uma produção teórica e/ou prática de alguns teatristas que haviam protagonizado uma apropiação parcial de modelos teatrais propostos nos primeiros anos do século XX.
Foi a urgente necessidade de preencher o vazio gerado pela ditadura militar que conduziu à escolha de modelos teatrais mencionados sem uma reflexão maior por parte dos grupos que saíram às ruas. O espaço aberto com a transição democrática, as crescentes manifestações políticas nas ruas pela democracia, em particular as passeatas estudantis por todo o país, e a presença dos operários metalúrgicos pela região do ABCD paulista estimularam diversos grupos teatrais a optar pela utilização de formas do teatro de rua. Silvana Garcia observa como grupos que haviam buscado fazer teatro em comunidades de periferia, se associaram rapidamente às lutas desatadas no final da década de 70. Em outras regiões do Brasil se observou a formação de grupos teatrais de estudantes que realizavam intervenções nas numerosas assembléias que proliferavam em todo os campi universitários. Estes grupos, em muitos casos acompanhavam os movimentos estudantis e sindicais quando estes ganharam às ruas.
Este processo foi muito intenso, em primeiro lugar porque ocorreu depois de um período de repressão e medo, e em segundo lugar porque os grupos se articularam impulsados por um movimento social que rapidamente ganhou espaço no conjunto da sociedade onde foi muito bem recebido. Assim, estes grupos ampliaram, forma quase instantânea, seu universo social. Num lapso de tempo muito curto, uma grande quantidade de novos grupos estava apresentando suas peças, na maioria das vezes de caráter emergencial, para públicos sempre dispostos a recebê-las bem, por reconhecer estas apresentações como importantes contribuições às suas causas. Ao mesmo tempo, para estes teatristas isto significava estreitar vínculos com o movimento social e concretizar assim a tarefa social do teatro.
Efetivamente, este processo foi complexo e crítico, porque se deu no marco de uma profunda crise do modelo de dominação política, e funcionou como uma avalanche que interferiu caoticamente na atividade de muitos grupos, conduzindo-os simultâneamente à realização espetacular e a crises organizativas terminais. Isso porque o novo marco cultural determinou a desestruturação e reorganização das formas de produzir dos grupos. No entanto, foram estas circunstâncias que propiciaram as mitificações que contribuiram com a recriação do teatra de rua no Brasil. A desinformação dos grupos teatrais é o primeiro elemento a se considerado, mas, as pressões políticas, a emergência do momento, e a paixão que aqueceu aquele período deram forma ao motor que empurrou os grupos a alçar mão de um discurso de justificação que se consolidou como prática mitificadora.
Não importou, portanto, se os referenciais mitificados cumpriram ou não uma determinada função na conformação de modelos teatrais, o fundamental foi que se tomou o suposto modelo de teatro de rua popular e militante como paradigma a ser emulado ou criticado radicalmente. Justamente aqui recai a força mobilizadora desta mitificação, pois foi ela que atuou influenciando a conformação de propostas estéticas que, atualmente, estão em funcionamento.
É bastante comum encontrar diretores de teatro de rua que mencionam diversas manifestações culturais populares como modelo de teatralidade de rua, assim, as diferentes formas do carnaval, o circo, e uma grande variedade de folguedos populares, são citados como referências para a criação. Mas, a questão que surge de imediato é: se essas formas efetivamente têm impacto nas propostas destes diretores ou são elementos necessários na elaboração de discursos ideológicos de justificação na construção de uma identidade? O caso do circo, especialmente as formas do circo-teatro, é exemplar pois, apesar de ser um elemento citado por diversos criadores como influência direta constitui hoje uma manifestação cultural de difícil localização no território nacional.
Identifico um mecanismo pelo qual diante da carência de modelos se operou atribuindo a um modelo escolhido, uma vigência atemporal que permitiu reinvindicá-lo e aplicá-lo à preparação de espetáculos para a rua. A lógica que se observa é: se os elementos do circo estavam relacionados com momentos tradicionais da nossa teatralidade também deveriam servir para reconstruir a identidade do teatro de rua enquanto modalidade popular, e portanto, as técnicas circenses poderiam ser reivindicadas enquanto elemento paradigmático para o treinamento do ator. Se o carnaval é nossa manifestação artística de rua por excelência, seu caráter lúdico e paródico pode ser aplicado à estrutura dramática do espetáculo teatral de rua.
Esta reivindicação da volta às origens não estaria relacionada com a valorização do produto artístico, com uma pretendida hierarquização do espetáculo? A pergunta surge a partir da constatação de que esta classe de justificativa aparece nos discursos de diversos grupos de teatro de rua do país e são coincidentes com o uso de vários elementos técnicos comumente utilizados pelos grupos europeus que visitaram a América do Sul a partir da segunda metade da década de 80.
A influência de Eugenio Barba marcou profundamente os grupos que fazem teatro de rua. Ian Watson diz que "os escritos teóricos de Barba sobre o Terceiro Teatro tiveram um grande peso devido a justificação intelectual que dão à existência de um teatro que está obrigado a viver marginalizado, (...) além disso a reputação de Barba, enquanto pioneiro de um teatro separado das vias institucionais ordinárias, tem sido fonte de apoio psicológico para muitos destes grupos (...) não há nenhuma evidência de que a única fonte de inspiração para estes grupos tenha sido o método do Odin Teatret de Barba, mas, não há dúvidas de que estes métodos têm servido como exemplos válidos" (Watson, 1989:4).
A partir do Encontro do Terceiro Teatro organizado por Barba em 1973 na Itália, e a subseqüente organização de encontros periódicos da International School of Theatre Antropological (ISTA) se difundiu pela Europa, e posteriormente pela a América Latina uma prática de revalorização dos espetáculos de rua com fusões de técnicas num espectro muito amplo, que vai desde exercício grotowskiano até a acrobacia circense.
Muitos dos elementos técnicos, tais como as formas para reunir e controlar uma grande quantidade de público, a técnicas das bandeiras, as personagens em pernas-de-pau, que também são características da linguagem circense e da carnavalesca, que aparecem abundantemente em vários espetáculos de rua, em grande parte são adaptados das encenações, dos filmes, ou das oficinas e palestras do Odin Teatret.
Esta influência se articulou e se viu reforçada pelo discurso de Barba que se apresentou no continente, afirmando que não queria fazer a revolução através do teatro, e que portanto, não reconhecia no teatro a capacidade de estimular transformações macro-sociais. Esta postura, explicitada no seu livro As Ilhas Flutuantes, foi reiterada em cursos e conferências, funcionando como ponto de apoio para vários realizadores brasileiros de teatro de rua, pois, esta negação do caráter militante do teatro, mas, não o político, ampliava a base de justificação daqueles diretores que buscavam novos paradigmas estéticos. Aqueles realizadores que haviam visto o teatro unicamente como uma manifestação política, e por isso mesmo o haviam repudiado, descobriram uma tradição a ser retomada e desenvolvida, uma tradição que recolocava a teatralidade como eixo do fenônemo espetcular.
O que se observou na segunda metade dos anos 80 foi uma combinação de fatores que favoreceu a retomada do teatro de rua, pois, a democratização do uso dos espaços públicos, relacionada com a trajetória iniciada pelos grupos no calor das lutas políticas, posteriormente referendada em um novo marco conceitual, criou as condições necessárias para que o teatro de rua ocupasse um novo lugar no panorama teatral brasileiro.
O teatro de rua, nos anos 90, é um desdobramento deste processo. Hoje em dia, é possível constatar o espaço conquistado por esta modalidade teatral a partir da existência de um número crescente de grupos em diversos estados do país, do acesso que estes grupos passaram a ter das fontes de financiamento, já seja através do apoio dos recursos estatais como da utilização de leis de incentivo fiscal, e também da incorporação de mostras de rua em importantes festivais teatrais no âmbito nacional.
BIBLIOGRÁFICAS
BACZKO, Bronislaw. Los Imaginarios Sociales. Ed. Nueva Visión. Buenos Aires. 1991.
BARTHES, Roland. Mitologias. Ed. Siglo XXI. México. 1988.
BOAL, Augusto. Técnicas Latinoamericanas de Teatro Popular. Corregidor. Buenos Aires. 1975.
CARREIRA, André. Teatro de Rua Depois dos Anos do Autoritarismo. Revista Cadernos de Classe. ___Universidade de Brasília. Nº. 0. 1988.
El Teatro Callejero. El Otro Teatro. Jorge Dubatti (Org.). Libros del Quirquincho. Buenos Aires. 1990.
El Teatro Callejero en la Ciudad de Buenos Aires. Latin American Theatr Review. Unversity of Kansas. ___Nº. 27/2. Spring 1994. p. 103-114.
Eleição e Reeleição e o Atentado do Século
Política de estabilidade e da continuidade do Plano Real ajudam na imagem de Fernando Henrique Cardoso para as eleições
MERCOSUL – Brasil, Argentina , Uruguai e Paraguai.
Privatização de empresas estatais como: Embraer, Telebrás e Vale do Rio Doce. Com objetivo fomentar a modernização das estruturas estatais para sustentar o desenvolvimento econômico e a integração do país ao mercado mundial.
Recessão econômica, baixos índices de crescimento e desemprego em massa.
Políticas sociais: Bolsa-escola, vale-gás e bolsa-alimentação.
Conseguiu aprovação de Emenda Constitucional para reeleição de cargos eleitos do poder executivo.
Avanços nas áreas de Educação e Saúde (distribuição gratuita de medicamentos contra a AIDS) e implementação de programa de reforma agrária.
Estabilidade política consolidou a democracia.
Reeleição em primeiro turno
Desvalorização da moeda por crise financeira internacional (Rússia, México e Ásia), provocando a maior crise financeira, elevando as taxas de juros e aumentando a dívida interna, déficit de investimentos.
Implantação do Gasoduto Brasil-Bolívia
Escândalo do Apagão, por falta de planejamento e investimentos na geração e distribuição da energia e também por grande período de estiagem, racionando o uso da energia em horários de pico.
Performance
Revista Ohun, ano 4, n. 4, p.1-32 , dez 2008 ISSN 1807-595479
Performance made in Brazil14
No Brasil, o corpo ainda sua.
Artur Barrio
As ações artísticas de Flávio de Carvalho, desde sempre envolvidas em provocações,
polêmicas e escândalos, já são consideradas como representativas dos primeiros movimentos
da arte da performance no cenário artístico nacional. Engenheiro, arquiteto, pintor
expressionista de grande reconhecimento, sociólogo, escritor e artista experimental do corpo,
Flávio de Carvalho realizou no início da década de 1930 a “Experiência no 2”. Obra
caracterizada pela ação do artista caminhando em direção contrária a uma procissão católica,
utilizando um acessório diferente durante todo o trajeto: um chapéu verde. Com essa atitude,
o artista buscou pesquisar a reação dos fiéis frente àquela situação inusitada. Como um
registro da ação, foi publicado posteriormente um livro de título homônimo. Uma breve
descrição do episódio é apresentada por Antonio Carlos Robert Moraes (1986, p.31-33):
A grande procissão de Corpus Christi se arrasta lentamente pela Rua Direita em direção à
Praça do Patriarca. Divide-se em alas – das velhas, dos pretos, das filhas-de-Maria, dos jovens
burgueses – que avançam cantando. Um vulto se insurge contra ela, andando no sentido
contrário. [...] Avança ameaçadoramente, sem tirar o chapéu. O clima começa a se tornar cada
vez mais hostil. A ala dos pretos olha submissa, as velhas comentam indignadas. Alguém grita:
"Tira o chapéu!”. [...] Lincha, lincha! É o grito que ecoa unânime entre a massa. Flávio sai em
fuga, “atropelando freiras”.
Mais tarde, em 1956, também em São Paulo, o artista realizou a “Experiência no 3”, obra elaborada e desenvolvida como uma passeata no Viaduto do Chá. Nessa outra ação, o artista desfilou com saia e blusa de mangas curtas e bufantes o “Traje Tropical” – uma crítica ao vestuário de modelo europeu adotado em países de clima tropical como o nosso. Com essa atitude de “antropofagia cultural”, o artista apontou para as questões relacionadas ao olhar do estrangeiro sobre as ditas culturas “exóticas” e antecipou as discussões propostas pela vertente pós-colonial da performance muito explorada por artistas como Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco15.
Outro artista de destaque na história da arte da performance, no Brasil, é Antonio Manuel. Artista português, radicado neste país, que na década de 1970 inscreveu “O Corpo É a Obra” no 19o Salão Nacional de Arte Moderna. O que compôs o trabalho foram os dados pessoais e 22 as medidas do próprio corpo do artista apresentados na ficha de inscrição do evento.
Resultado: Antonio Manuel teve seu trabalho rejeitado pelo júri e como resposta se apresentou nu, descendo as escadas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, durante a abertura do evento. Com essa atitude, o artista pôs em xeque toda a estrutura de seleção, montagem e exibição das obras de arte no espaço institucional; desafiou os conceitos de moral e pudor; quebrou tabus; e exaltou o exercício da liberdade artística acima de tudo. Sobre sua atitude, o próprio artista deu o seguinte depoimento:
Comecei a perceber a temática do corpo. Afinal era ele que estava na rua, sujeito a levar um tiro, receber uma pedrada, uma cacetada na cabeça, então imaginei usar o meu próprio corpo como obra. Decidi inscrevê-lo no Salão Nacional de Arte Moderna de 1970. Na ficha de inscrição escrevi como título da obra meu nome, as dimensões eram as do meu corpo, etc. Fui cortado. [...] Eu me dirigi ao Museu de Arte Moderna e lá cheguei uma hora antes da inauguração. Aí, me veio a idéia de ficar nu. Nada foi programado, a idéia surgiu ali como fruto de um sentimento de asco e de repulsa. As pessoas no vernissage ficaram atônitas, mas naquela meia hora eu me senti com uma força muito grande. (MANUEL, 1986).
Neste breve percurso histórico, destacamos mais alguns representantes da arte do corpo e da performance em território nacional:
Wesley Duke Lee com as primeiras investidas na prática da linguagem performance no Brasil; Paulo Brusky, também considerado como precursor da arte conceitual em nosso país; Teresinha Soares em Belo Horizonte16; José Roberto Aguillar e Banda Performática; Ivald Granato, organizador do happening/evento de intervenção artística intitulado “Mitos Vadios” (1978), ocorrido no estacionamento Unipark, Rua Augusta, em São Paulo. Participaram do acontecimento o próprio Ivald Granato, em performance como Ciccilo Matarazo, Hélio Oiticica, Claudio Tozzi, José Roberto Aguilar, Antonio Manuel, Ana Maria Maiolino, Júlio Plaza, Olney Kruse (enviou a obra), Regina Vater, Portilhos e Ubirajara Ribeiro. Hélio Oiticica apareceu travestido, usando peruca feminina, maquiagem, sunga, além de salto alto. A ação consistia na sua passagem em frente aos transeuntes ora exibindo a língua em movimento frenético ora tocando os genitais sob a sunga. Em Quase Heliogábalo, o poeta Waly Salomão descreveu tal performance ao seu modo: Hélio surge demencial, imantado pela reverberação de uma aparência de bacante, dançando, girando, uma mênade enlouquecida, “ESTOU POSSUÍDO”, gargalhava das obras de arte expostas ao redor pelos outros artistas, balançava, blusa com imagem dos Rollings Stones, blusão com a estampa do Jimi Hendrix, maquiagem carregada de ator de teatro japonês fazendo papéis femininos, o salto plataforma prateado, sério nunca, a performance era a chalaça com a pretensa seriedade dos artistas comprometidos com o mercado de arte. (SALOMÃO, 2003, p.139-140).
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Hélio Oiticica foi o criador dos “Parangolés” (1967). Na apresentação desses trabalhos, o público era convidado a participar da obra, ser a própria obra de arte em movimento, vestir as capas coloridas e re-montáveis. Os “Parangolés” só existiram enquanto acontecimento, cores em ação e performance. Rubens Gerchman, artista carioca que em 1974 realizou a performance “Por onde anda Matevich?”, no momento do desfile da bateria da Escola de Samba Mangueira com seus passistas vestidos com os “Parangolés”, em frente ao Museu de Arte Moderna - MAM do Rio de Janeiro, declarou sua admiração à ousadia e irreverência de tal evento.Oiticica também propôs “vivências” para os espectadores diante e dentro de suas produções artísticas, a exemplo de “Tropicália” (1966-67) e “Babylonests” (1971), espaços criados pelo artista com diversas referências à cultura nacional, com elementos tipicamente brasileiros, em que os conceitos de ambientação, instalação e performance foram explorados. Esses espaços de imersão eram completados quando preenchidos pelo corpo vivo, no aqui agora, em tato; paladar; visão; olfato; audição; e humores. Diante de tais proposições, expor objetos como os “Parangolés” em cabides ou caixas de acrílico é encerrar à categoria de “fetiche” algo já sem vida, desvirtuado de um de seus propósitos – o movimento, o acontecimento. Quando vemos um “Parangolé” em exposição, logo ficam evidentes as contradições nos projetos de montagem e fruição das obras em algumas mostras de arte contemporânea no Brasil.
Lygia Clark, artista mineira com vivências no Rio de Janeiro e no exterior, em suas pesquisas entre a expressão artística, as experimentações corporais e a Psicanálise, também objetivou aproximar arte e vida em suas produções. Partiu da criação de objetos que apresentavam formas e cores caracteristicamente neoconcretas e chegou ao conceito de corpo enquanto casa, à experiência do corpo no contexto artístico/terapêutico e à “gestualidade performática por parte de um espectador participante” (SANTAELLA, 2003, p.256). Criou “Máscaras sensoriais”, “Baba antropofágica”, entre outras produções como “Nostalgia do corpo - objetos relacionais” (1965-1988). Também expôs “Bichos”, esculturas em placas de metal unidas por dobradiças. Essas obras são caracterizadas pelo convite à participação e, assim como os “Parangolés” de Hélio Oiticica, estarão sujeitas a um comprometimento de suas propostas de manipulação e fruição se “encarceradas” numa redoma de vidro. A artista dá o seguinte depoimento sobre sua produção: Depois de ver um livro de fotografias pornográficas percebi que meus trabalhos, proposições, eram muito mais eróticos que o livro que havia visto. Ser tocada por um amigo que tinha na sua cabeça uma máscara sensorial provocou um grande choque em mim como se tivesse profanado o meu trabalho ainda vivido como sagrado. (FERREIRA; COTRIM, 2006, p.354).
Além de Hélio Oiticica e Lygia Clark, citados por RoseLee Goldberg (2001, p.212) como artistas da história da performance art na América Latina, Lygia Pape também é destacada pelo crítico britânico Guy Brett entre os artistas que iniciaram as pesquisas sobre a body art e a performance na contemporaneidade brasileira. (MORAES, A., 2003). Ainda entre as décadas de 1960 e 1970, Artur Barrio mesclou ações/situações com a exposição do corpo em diversos cenários urbanos. Sempre com uma postura política e ideológica muito clara contra a repressão, a violência e o medo vividos no país nesse período, Barrio realizou ações como a “Situação ORRHHH...”, no evento “Do Corpo à Terra” (1970), em Belo Horizonte, quando lançou as “Trouxas ensangüentadas” (pedaços de carne e ossos de animais embrulhados em tecido, amarrados com barbantes) no Ribeirão das Arrudas, na capital mineira. Diante dessas produções, o crítico Francisco Bittencourt denominou o grupo de artistas participantes desse evento (entre eles Cildo Meireles e Hélio Oiticica) de “Geração Tranca-Ruas”. Em “4 dias e 4 noites” (1970), o artista perambulou pelas ruas do Rio de Janeiro, vivendo intensamente as relações entre o corpo e a cidade, o eu e o outro. Caracterizado pelos imprevistos e incertezas da existência, esse trabalho,
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elaborado desde o início como arte e registrado anos depois num “Caderno-livro”, atualiza e extrapola o que até então é conhecido como live art e performance. Em entrevista sobre essa produção, Barrio declarou: Cecília: Barrio, pensando nessa deambulação pela cidade, queria que você falasse um pouco do que chama de “deflagradores” e que, como você diz, às vezes podem vir de reações orgânicas, de fluidos orgânicos, que poderiam agir como provocadores, fragmentando o cotidiano. Barrio: Já escreveram dizendo que sou um heracliteano... o movimento, o fluir, os fluidos corporais, o dentro e o fora. [...] Mas sobre essa questão do corpo relacionado às secreções, excreções, acho que o Cristianismo anulou de tal maneira o corpo, que o que existe como expressão interna do corpo passa a ser encarado como uma coisa atroz, sem muito significado. A nossa leitura do corpo é muito restritiva. O exterior existe, mas o nosso interior não existe. (COHEN, A. P., 2001, p.81-82).
A partir da década de 1980, surgiram no cenário nacional os artistas Guto Lacaz em “Eletroperformance I” (1983); Renato Cohen com suas pesquisas e espetáculos de fronteira entre as diversas áreas do conhecimento como, por exemplo, “Tarô-Rota-Ator“ (1984), O Espelho Vivo-Projeto Magritte” (1986); Otávio Donasci e suas “Videocriaturas”; Eduardo Kac entre o carbono e o silício na performance “Time Capsule” (1997), quando implantou um microship/transponder de identificação em seu próprio calcanhar; Tunga propondo “Instaurações”17; Maria Beatriz de Medeiros e o grupo de pesquisa Corpos Informáticos em performances e ações como a instalação intitulada “Estar” (2005)18 (Figura 18). A partir de uma sala de estar real montada na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, o grupo Corpos Informáticos interagiu em telepresença com diversos internautas durante o evento. O objetivo central da pesquisa do grupo é: [...] o corpo humano mediado por tecnologias: o corpo humano atual, desde a mais tenra idade, cotidianamente transpassado por técnicas imperceptíveis ou não; o corpo do outro que da mesma forma se constrói; a imagem de outros corpos (espectros), que também nos tornam conscientes de nossos próprios, imagem impressa, imagem-movimento transmitida, distorcida, corrigida, sincopada..., essa que se torna objeto de desejo, desejo de ser, desejo de tornar-se, mas também desejo de manipulação, de possessão; nossos corpos e suas próteses, sejam elas meios de locomoção, de leitura, de visão, de audição ou de criação, todas elas mais ou menos iterativas; enfim corpos constantemente redimensionados por novas tecnologias; logo, novos corpos e novas consciências. (MEDEIROS, 2005, p.150). Recordamos ainda a significativa presença de Márcia X no panorama da performance no Brasil, explorando as relações entre arte, erotismo e religião como na performance “Pancake” (2001) . Sobre a produção da artista, destacamos uma obra
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apresentada alguns meses após a sua morte: “Desenhando com terços” – imagem fotográfica de dois rosários católicos como pênis sobrepostos em forma de X, produto da performance de mesmo título. Lamentavelmente, esta produção foi alvo de censura por parte do próprio Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, instituição apoiadora da exposição itinerante “Erotica, os sentidos na arte” (2006).19 Também têm figurado entre os nomes da arte performance na atualidade brasileira Marcelo Cidade, Marco Paulo Rolla, Chelpa-Ferro, Laura Lima, entre outros. Décadas após as experimentações realizadas com o corpo pelos artistas das vanguardas históricas, a arte da performance – surgida entre as décadas de 1960 e 1970 – tem sido notada como uma das linguagens mais expressivas no cenário artístico do final do século XX e início do século XXI. Neste momento em que o conceito de identidade é explorado em diversas produções artísticas e científicas, tempos de corpos esteticamente modificados e mediados por tecnologias, evidenciamos a recorrência da apresentação/representação do corpo associada a questões políticas, científicas e bioéticas. A importância dada ao corpo na sociedade contemporânea, onde as noções de espaço público e privado, sujeito e objeto, o eu e o outro são mais evidenciadas, remete à imagem de um corpo político e crítico. Na atualidade, este corpo tem sido explorado como elemento estético, artístico, e até como instrumento bélico – o corpo arma, o homem bomba – também como máquina, redimensionado pelo uso de próteses tecnológicas. Este corpo atual, “transpassado por tecnologias”, é, paradoxalmente, limitado pela intolerância característica de um poder global e hegemônico. Este corpo expressa a sociedade contemporânea em sua complexidade e fragmentação, onde signos culturais, identitários, políticos, coexistem sobre uma pele escamada e com grande potencial de transformação. Este é um corpo que concentra em si a capacidade de síntese de uma cultura predominantemente urbana, que ainda busca estabelecer uma relação mais equilibrada com o mundo artificial. Não é sem propósito que o artista contemporâneo – principalmente o artista performático – tem reivindicado a presença do corpo do homem comum na arte e no nosso cotidiano que a cada dia perde em espontaneidade e liberdade, apresentando um corpo ainda humano, essencialmente animal, com odor e suor sobre a pele: o corpo natural frente ao corpo artificial. Enquanto os precursores do gênero performance colhem os frutos de suas apresentações pretéritas, divulgando e comercializando os registros dessas produções, realizando novas mostras no circuito de galerias e museus (Marina Abramovic, Gilbert & George, Orlan, Chris Burden, entre outros), novas gerações de artistas, teóricos e interessados na linguagem da performance continuam a surgir.
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